Duas
moças conversam sobre escova progressiva.
- Eu não vivo sem – disse a primeira.
- Também não – disse a segunda.
- Se eu fosse cientista, criava uma lei obrigando as mães a
ingerirem uma substância para suas filhas nascerem com os cabelos lisos.
- E os meninos?
- Ah, homem não tem esse problema. É só não ter cabelo duro
que tá bom.
- O meu cabelo é duro. E eu não sou homem.
- O meu é geneticamente modificado. Ou como dizem os
cadernos do meu filho, eu mudei o fenótipo dele.
- O que é fenótipo?
- Você não sabe o que é fenótipo?
- Eu não leio bula de remédio.
- Mas como você é burra! Fenótipo tem a ver com coisa de
escola. Ciências. Vestibular. Essas coisas.
- Explica esse treco direito.
- Ah... É como se fosse o que a gente pode mudar... A cor do
cabelo, a cor dos olhos, o bronze da pele...
- Mas a gente não pode mudar a cor dos olhos!
- Vai dizer que você não conhece lente de contato?
- Eu não conheço nada. Só leio revista de fofoca. Saber o
que acontece na novela já é suficiente.
- Ai, eu não suportaria viver em um mundinho tão pequeno
como o seu.
- Você não vê novela?
- Claro que vejo. Mas vou ao cinema, vejo filme legendado,
leio revista de gente moderna. Você conhece todos os tipos de orgasmo? Sabe
diferenciar amor e paixão? Sabe quando começa o Fashion Week desse ano?
- Ai!
- O que foi?
- Puxaram meu cabelo. Esse salão já foi melhor.
- Não, querida. Os seus neurônios é que já foram bem
melhores.
- Eu não preciso saber isso tudo. Eu sei o que é um bom
orgasmo, sei que amo minha família e... Olha, sobre esse tal de Fashion Week,
eu já ouvi falar sobre ele, para sua informação.
- Tudo bem. Não vou deixar de ser sua amiga por causa disso.
Eu sou uma boa pessoa, não faço Bullying com ninguém.
- Bullying? Mas isso é coisa de criança!
- Ah, amiga, eu te adoro, mas você anda muito burrinha.
Precisa se informar mais.
- Então o que é Bullying?
A amiga
demorou a responder.
- É da família do racismo, ah, dessas coisas que dão cadeia.
- No meu tempo, Bullying era apelido.
- É, meu bem, mas hoje em dia tudo dá problema. As pessoas
dão defeito por qualquer coisa. As nossas armaduras já foram bem mais fortes.
- Pois é. Hoje em dia tudo requer tarja preta, psicólogo,
psiquiatra. Meu marido inventou que tá com depressão.
- Uau, isso é sério. O que você fez?
- Mandei tomar uma aspirina. É esse tempo que anda louco
demais.
Deram
uma leve risada.
- No meu tempo, depressão era motivo pra surra de cinto. – disse a esposa prática.
- Não fale assim. Depressão é doença. Falta de serotonina. É
coisa do cérebro. E é genético, sabia? Meu bisavô teve, minha avó teve e eu
estou começando a apresentar alguns sintomas. Estou até com medo dos meus
filhos pegarem isso.
- Ué, e já que você é tão moderna, por que não se previne?
- E o que você acha que eu faço?
- Não sei, você ainda não disse! – respondeu a “burra”.
- Lá em casa, eu fiz o armário da alegria. É o laboratório
da felicidade. Você toma um comprimido, apaga e acorda tinindo.
- E se o comprimido não funcionar?
- Ué, toma outro!
As duas
entreolharam-se.
- Ai! – a moderna gritou.
- O que foi?
- Essa manicure que me arrancou um bife!
- Aproveita e guarda. O preço da carne tá pela hora da
morte.
- Eu não faço compras, querida. Tenho empregada. E outra:
sou vegetariana.
A
prática pediu, com um gesto, para que a cabelereira parasse de alisar seus
fios. Olhou bem no fundo dos olhos da “amiga”, levantou uma sobrancelha e
acabou levantando o corpo todo.
- Vai aonde com esse cabelo por fazer, menina?
- Vou pro mundo.
- Como assim? Tá maluca? Ó, se quiser eu tenho um comprimido
aqui...
- Não, deixa pra você, que tá precisando mais. Aliás, minha
filha, teu caso é urgente.
E saiu
andando.
- Mas hein, e esse cabelo? – A moderna gritou, ainda sem
entender o que havia acontecido.
- Fica tranquila. Se eu olhar pro espelho agora, a única
coisa que vai me assustar é o cabelo. O resto tá em dia.
- Que resto? Você é uma porta! Não lê nenhuma revista, não
sabe nada...
A burra
olhou bem no fundo dos olhos da moderna e falou:
- Relaxa, menina. Com o que eu já sei, dá pra ser muito da
feliz.
E saiu
com os cabelos divididos entre o liso e o cacheado. Mas a cabeça saiu fresca,
limpa, sem problemas. E o sorriso saiu mais vivo do que qualquer outra coisa ou
pessoa que passasse ao seu lado naquela calçada.
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