Oito
meses. Nem nasceu ainda, está dentro da barriga. Tudo que se vê é: água, água,
água. Placenta. Brinca com o cordão umbilical para passar o tempo. Como um
prisioneiro, chuta sua cela, grita, revolta-se com a vida que nem chegou ainda;
não é ingratidão, é pressa mesmo. Vai entender.
Nasceu.
Virou álbum de fotos, de vídeos, de figurinhas. Todas as roupinhas mais lindas,
os sapatinhos, as gracinhas, as caras e bocas de joelho. Não me venha com
tolices ou mímicas ridículas; não me dê problemas, me dê leite. Muito leite.
Quero uma overdose de leite. Se houver algum grupo de anônimos viciados em
leite (como o Alcoólatras Anônimos), quero participar. Quero que o mundo se
resuma a peitos fartos e abundantes; e quando o leite acabar, quero dormir,
dormir e sonhar com leite, sou um copo de leite, uma flor copo-de-leite, um
peito cheio de leite, uma vaca cheia de leite, tenho pele de leite,
quero/amo/sou leite. Cinco horas de sono já representam enorme período de
abstinência.
Um
ano. A menina fala demais; o menino faz sons esquisitos. Começa a guerra dos
sexos, um é melhor que o outro, um é mais maduro que o outro. Dane-se a idade,
a genética, a criação. O que importa é o sexo, sempre o sexo; e é daí que
nascem os machistas, as feministas, as futuras vítimas da lei Maria da Penha,
os futuros enquadrados na mesma lei, os “bichinhas”, as “sapatas”, você tem que
gostar de carrinho, você tem que brincar de boneca, você tem que cruzar as
pernas quando sentar, você tem que coçar o saco, cadê a sua namoradinha?, cadê
o seu namoradinho?, cadê aquele amiguinho ou amiguinha que você não deve
imitar?, foque no rosa, foque no azul, a primeira festa será das princesas, a
primeira festa será dos carrinhos, não haverá primeira festa; quando ele
crescer, ele decidirá se quer festa ou não. Reze para não ter pais com a cabeça
aberta demais; eles darão muito trabalho. Reze para não ter pais com a cabeça
fechada demais; eles terão muito trabalho.
Cinco
anos. Bicicleta, sorvete, escolinha, time de futebol, amiguinhos, namoradinhos
(eles nos perseguirão durante toda a vida), sábados de sol, domingos de “quero
brincar no parque!”, panelas de brigadeiro, “como foi que eu nasci?”, a cegonha
começa a ser citada. Quer uma dica? Fuja da cegonha. Só pense nesta criatura
depois de assinar sua carteira de trabalho. O que é carteira de trabalho? Vá
brincar que você ganha mais. Quando a falta de respostas vier, vire-se; não dá
pra colocar a criança pra dentro da barriga e pensar no que será dito.
Dez
anos. Cresceu. Ficou chato. Emburra a cara quando ouve um não. Reclama quando
ganha pijama em pleno aniversário. Não quer comer salada. Não gosta de estudar.
Não quer dormir cedo. Não quer acordar cedo. Não quer escovar os dentes. Não
quer usar aquele suéter de bolinhas amarelas e estrelinhas verdes que a tia fez
com tanto carinho. Não quer escrever cartinha para o papai noel, mas quer
presentes mesmo assim. Quer o ovo de páscoa mais caro. Quer o carrinho que o
colega comprou na Eslovênia. Quer ver um filme que nem você vê para não ficar
traumatizado. Já fala palavrões mesmo sem saber o significado. Briga na escola.
Volta pra casa com o joelho ralado. Antes, sugava o seu peito. Hoje, suga sua
cabeça.
Quinze
anos. Baile, festa, festa, baile. Mal deu o primeiro beijo e já quer a primeira
transa. Mal largou o leite e já quer vodka. Mal comeu o almoço e já quer o
jantar. Virou mulher na noite que deixou de ter catorze e fez quinze anos,
quando trocou o all star pelo scarpin. Virou homem, já sai por aí com uma
camisinha no bolso. É obrigado a ter namoradinhas, a pensar no futuro e a fazer
a cama. Quanta responsabilidade. Vive de mesada, de festa, de agito, de
madrugada. Vive de olheiras. Vive com olheiras. E as orelhas cheias de brincos.
E os ouvidos sem tímpanos. E os sorrisos nas redes sociais. E as lágrimas para
impressionar os pais. E as notas vermelhas escondidas embaixo da cama. E o
tédio de domingo que te faz pensar em onde você poderia estar agora. E o
primeiro amor que avassala, atropela, enlouquece. O primeiro amor que te
desperta. Não quero despertar. Mas perdi o sono. Ser ou não ser? Sentir ou não
sentir? Eis a questão.
Vinte
anos. Maior de idade. Flor da idade. Sou demais. O maioral. Mil namorados. Mil
namoradas. Amigos para dar e vender. O amor? Deixei na adolescência. Faculdade,
porque quero ser alguém. Já sou alguém: balada? Presente. Chopada? Presente.
Problemas? Procurem meu epitáfio.
Vinte
e cinco anos. Os cremes contra espinhas dão lugar aos antirrugas. A faculdade
acabou, o trabalho chegou, descobriu um cabelo branco e morreu de pavor. O amor
apareceu de novo. Ainda é um adolescente. Mas agora quer casar, quer morar
junto, quer ter filhos. O amor quer sentir o meu bafo quente pela manhã, quer
descobrir minhas estrias, quer reclamar dos meus roncos, quer fazer a minha
alegria durante os primeiros anos e depois procurar outro desocupado para fazer
de idiota. O amor me deu um buquê de rosas, prometeu fazer tudo que eu quisesse
se eu a levasse a um show de MPB, me levou para um jantar, pagou o champanhe
mais caro do motel, me beijou na frente da lareira e acendeu uma lareira em
mim, me fez de tapete, de cama, de parede branca para pendurar seus quadros,
seus gostos, seus anseios, suas virtudes, seus defeitos. O amor me pregou uma peça.
Trinta
anos. Primeira crise. Casamento na corda bamba; os casais de celebridades dizem
nas revistas que o clima de tensão aquece a relação – a minha já teve
queimaduras de 1º, 2º e 3º graus. O chefe é insuportável, os filhos dão
trabalho, o amor só existe no cinema e nas canções do Chico. O espelho me
detesta. Depressão, síncope, TPM, reumatismo, pedra nos rins, crise de
estresse, diabetes, compulsões, vírus, hérnia de disco, cirrose, enxaqueca.
Trocava tudo isso por uma boa gripe causada por um beijo debaixo da chuva.
Crises. Todas as crises. Trinta mil crises.
Trinta
e cinco: hora de fazer uma tatuagem declarando para o mundo que você sobreviveu
– por enquanto. Quarenta, quarenta e cinco, cinquenta. Boletos, boleros,
passagem de tempo, brisas de verão, furacões em todas as estações, tingir os
cabelos todo mês, plásticas, consertos, manutenção, em eterno reparo. Vida que
segue, que passa rápido, que não olha pra frente: simplesmente anda sem olhar
para os lados, como uma criança que não ouve a mãe ensinar a atravessar a rua.
A vodka é boa, mas caramba, que saudade do gosto de leite. Viver para morrer. E
quem sabe, viver de novo, morrer de novo, sem parar. Como numa dança maluca
onde todos seguem a seguinte canção: o tempo.
Escravos
da vida. Escravos do tempo. Caixão. Barriga. Barriga. Caixão. A ordem já não
interessa.
(Extraído do livro "A culpa é do tempo")
(Zippora Seven)
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