segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Linha do tempo



            Oito meses. Nem nasceu ainda, está dentro da barriga. Tudo que se vê é: água, água, água. Placenta. Brinca com o cordão umbilical para passar o tempo. Como um prisioneiro, chuta sua cela, grita, revolta-se com a vida que nem chegou ainda; não é ingratidão, é pressa mesmo. Vai entender.
            Nasceu. Virou álbum de fotos, de vídeos, de figurinhas. Todas as roupinhas mais lindas, os sapatinhos, as gracinhas, as caras e bocas de joelho. Não me venha com tolices ou mímicas ridículas; não me dê problemas, me dê leite. Muito leite. Quero uma overdose de leite. Se houver algum grupo de anônimos viciados em leite (como o Alcoólatras Anônimos), quero participar. Quero que o mundo se resuma a peitos fartos e abundantes; e quando o leite acabar, quero dormir, dormir e sonhar com leite, sou um copo de leite, uma flor copo-de-leite, um peito cheio de leite, uma vaca cheia de leite, tenho pele de leite, quero/amo/sou leite. Cinco horas de sono já representam enorme período de abstinência.
            Um ano. A menina fala demais; o menino faz sons esquisitos. Começa a guerra dos sexos, um é melhor que o outro, um é mais maduro que o outro. Dane-se a idade, a genética, a criação. O que importa é o sexo, sempre o sexo; e é daí que nascem os machistas, as feministas, as futuras vítimas da lei Maria da Penha, os futuros enquadrados na mesma lei, os “bichinhas”, as “sapatas”, você tem que gostar de carrinho, você tem que brincar de boneca, você tem que cruzar as pernas quando sentar, você tem que coçar o saco, cadê a sua namoradinha?, cadê o seu namoradinho?, cadê aquele amiguinho ou amiguinha que você não deve imitar?, foque no rosa, foque no azul, a primeira festa será das princesas, a primeira festa será dos carrinhos, não haverá primeira festa; quando ele crescer, ele decidirá se quer festa ou não. Reze para não ter pais com a cabeça aberta demais; eles darão muito trabalho. Reze para não ter pais com a cabeça fechada demais; eles terão muito trabalho.
            Cinco anos. Bicicleta, sorvete, escolinha, time de futebol, amiguinhos, namoradinhos (eles nos perseguirão durante toda a vida), sábados de sol, domingos de “quero brincar no parque!”, panelas de brigadeiro, “como foi que eu nasci?”, a cegonha começa a ser citada. Quer uma dica? Fuja da cegonha. Só pense nesta criatura depois de assinar sua carteira de trabalho. O que é carteira de trabalho? Vá brincar que você ganha mais. Quando a falta de respostas vier, vire-se; não dá pra colocar a criança pra dentro da barriga e pensar no que será dito.
            Dez anos. Cresceu. Ficou chato. Emburra a cara quando ouve um não. Reclama quando ganha pijama em pleno aniversário. Não quer comer salada. Não gosta de estudar. Não quer dormir cedo. Não quer acordar cedo. Não quer escovar os dentes. Não quer usar aquele suéter de bolinhas amarelas e estrelinhas verdes que a tia fez com tanto carinho. Não quer escrever cartinha para o papai noel, mas quer presentes mesmo assim. Quer o ovo de páscoa mais caro. Quer o carrinho que o colega comprou na Eslovênia. Quer ver um filme que nem você vê para não ficar traumatizado. Já fala palavrões mesmo sem saber o significado. Briga na escola. Volta pra casa com o joelho ralado. Antes, sugava o seu peito. Hoje, suga sua cabeça.
            Quinze anos. Baile, festa, festa, baile. Mal deu o primeiro beijo e já quer a primeira transa. Mal largou o leite e já quer vodka. Mal comeu o almoço e já quer o jantar. Virou mulher na noite que deixou de ter catorze e fez quinze anos, quando trocou o all star pelo scarpin. Virou homem, já sai por aí com uma camisinha no bolso. É obrigado a ter namoradinhas, a pensar no futuro e a fazer a cama. Quanta responsabilidade. Vive de mesada, de festa, de agito, de madrugada. Vive de olheiras. Vive com olheiras. E as orelhas cheias de brincos. E os ouvidos sem tímpanos. E os sorrisos nas redes sociais. E as lágrimas para impressionar os pais. E as notas vermelhas escondidas embaixo da cama. E o tédio de domingo que te faz pensar em onde você poderia estar agora. E o primeiro amor que avassala, atropela, enlouquece. O primeiro amor que te desperta. Não quero despertar. Mas perdi o sono. Ser ou não ser? Sentir ou não sentir? Eis a questão.
            Vinte anos. Maior de idade. Flor da idade. Sou demais. O maioral. Mil namorados. Mil namoradas. Amigos para dar e vender. O amor? Deixei na adolescência. Faculdade, porque quero ser alguém. Já sou alguém: balada? Presente. Chopada? Presente. Problemas? Procurem meu epitáfio.
            Vinte e cinco anos. Os cremes contra espinhas dão lugar aos antirrugas. A faculdade acabou, o trabalho chegou, descobriu um cabelo branco e morreu de pavor. O amor apareceu de novo. Ainda é um adolescente. Mas agora quer casar, quer morar junto, quer ter filhos. O amor quer sentir o meu bafo quente pela manhã, quer descobrir minhas estrias, quer reclamar dos meus roncos, quer fazer a minha alegria durante os primeiros anos e depois procurar outro desocupado para fazer de idiota. O amor me deu um buquê de rosas, prometeu fazer tudo que eu quisesse se eu a levasse a um show de MPB, me levou para um jantar, pagou o champanhe mais caro do motel, me beijou na frente da lareira e acendeu uma lareira em mim, me fez de tapete, de cama, de parede branca para pendurar seus quadros, seus gostos, seus anseios, suas virtudes, seus defeitos. O amor me pregou uma peça.
            Trinta anos. Primeira crise. Casamento na corda bamba; os casais de celebridades dizem nas revistas que o clima de tensão aquece a relação – a minha já teve queimaduras de 1º, 2º e 3º graus. O chefe é insuportável, os filhos dão trabalho, o amor só existe no cinema e nas canções do Chico. O espelho me detesta. Depressão, síncope, TPM, reumatismo, pedra nos rins, crise de estresse, diabetes, compulsões, vírus, hérnia de disco, cirrose, enxaqueca. Trocava tudo isso por uma boa gripe causada por um beijo debaixo da chuva. Crises. Todas as crises. Trinta mil crises.
            Trinta e cinco: hora de fazer uma tatuagem declarando para o mundo que você sobreviveu – por enquanto. Quarenta, quarenta e cinco, cinquenta. Boletos, boleros, passagem de tempo, brisas de verão, furacões em todas as estações, tingir os cabelos todo mês, plásticas, consertos, manutenção, em eterno reparo. Vida que segue, que passa rápido, que não olha pra frente: simplesmente anda sem olhar para os lados, como uma criança que não ouve a mãe ensinar a atravessar a rua. A vodka é boa, mas caramba, que saudade do gosto de leite. Viver para morrer. E quem sabe, viver de novo, morrer de novo, sem parar. Como numa dança maluca onde todos seguem a seguinte canção: o tempo.
            Escravos da vida. Escravos do tempo. Caixão. Barriga. Barriga. Caixão. A ordem já não interessa. 

(Extraído do livro "A culpa é do tempo")

 (Zippora Seven)

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