terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Fale o indispensável



Eu ando com um medo descomunal, sabe? É medo de elevador, de bicho peçonhento, de inseto. Medo até de avião. Acho que vou ver um médico. É esse tempo louco que deixa a gente doente por nada. Vai entender.
               Minha pressão subiu ontem. Acho que foi o tempo, sabe? Calor, frio... Porque quando faz calor, fica quente, e quando faz frio, fica gelado. Eu não entendo esse tempo que a gente espirra por tudo, e quando não espirra, não consegue sentir a garganta de tão seca que a bicha fica. Deve ser esse aquecimento global, né? Por que não puxam um gato e ligam um ar condicionado perto do planeta pra tudo voltar a ser como era antes? Que louco, não?
               Meu vizinho deu uma festa ontem que não me deixou dormir. Era um som alto, aquele bate-estaca, sabe? Meus neurônios estão fazendo qualquer coisa pra pular da minha cabeça. Eu já reclamei com o porteiro, com o zelador, com o síndico, até mesmo com o infeliz do meu vizinho eu reclamei. E pensa que adiantou? Que nada! Deve ser esse tempo louco que mexe com a cabeça das pessoas, né?
               Briguei com meu marido ontem. E eu não entendo, porque a gente se gostava tanto... Olha, não tinha uma noite que a gente não dormisse com o corpo grudado no outro. E a briga foi por besteira, coisa de casal, mas brigar é ruim demais. E sabe, moço, se fosse só o medo de perder, eu até que estava melhor. Mas o pior é que eu tenho medo de já ter perdido há tempos e só ter me dado conta agora. É porque dizem que todo casamento tem suas crises, mas pimenta nos olhos dos outros é refresco. E eu já nem sei se eu gosto dele como gostava no início, quando a gente se olhava por inteiro, um querendo cada milímetro do outro, um dando a vida para invadir a mente do outro... Deve ser esse tempo que deixa a gente desajustado. O século, a atualidade, o clima, a temperatura; tudo influencia, moço, é tudo uma questão ambiental. Eu só queria saber porque o tempo não muda para melhor pra gente se amar de novo. Tenho que conversar com os meteorologistas do momento pra ver se eu encontro uma brecha na previsão do tempo.
               Eu não ando bem da cabeça não, sabe? É muita coisa pipocando aqui dentro, um monte de pensamentos misturados, coisa de gente doida. Às vezes dá uma vontade de fugir... Mas é que eu já não tenho mais vinte anos de idade. Eu tenho filho, marido, casa, ruga. A vida mudou e nem me avisou nada, caminhou sozinha, dane-se o resto. Moço, ontem mesmo eu era jovem, eu tinha sonhos, eu queria ser tanta coisa... Eu podia ter tido o mundo nas mãos, eu podia ter feito o meu próprio mundo, mas eu quis seguir o mundo medíocre dos outros... E acabei me perdendo de mim, se é que isso é possível – bom, eu acho que é. Tem dias que eu daria a vida pra voltar tudo, e aí eu penso: será que eu teria coragem de fazer tudo diferente? Eu não sei, só sei que quando a gente fica velha, parece que o cérebro encolhe e a gente pensa tudo que não devia pensar enquanto lava a louça ou faz o jantar.
               Só me resta esperar morrer, moço. Mas isso é coisa do tempo também. Eu nem me meto.
               Isso tudo é culpa da temperatura. 




 (Diary of a lost girl, 1929)

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