sábado, 28 de novembro de 2015

Superar (ou "super ar")



                De repente, um cheiro de morte apareceu na minha família. Meu tio foi embora e deixou lágrimas, saudades e um punhado de dor. A família inteira morreu um pouco, e então eu pensei na burocracia, nas incertezas, no futuro de quem fica. Todos nós pensamos. E aqui estou eu, antes mesmo de terminar a introdução, já pensando nas considerações finais. Ou seria o contrário?
            A vida é estranha, cheia de buracos, de porradas, de expectativas frustradas. Mas acredite: ela não é tão falha quanto a morte. A morte, meus amigos, não presta. Quem vai, vai. Mas quem fica...
            Quem fica deve assinar papéis, cuidar de problemas difíceis, planejar um futuro impensado, reerguer-se, tirar forças do fundo do poço, reviver. Como se tivesse acabado de passar por um desfibrilador. Os efeitos do choque parecem permanentes.
            Não é possível esquecer – ah, isso não existe. Nem pra quem morre, nem pra quem fica, nem pra quem descobre que não tem mais chance. Só há uma maneira de realmente esquecer aquele(a) ou aquilo que nos é quase essencial de tão importante: ou você bate a cabeça na parede e sacode o cérebro ou junta os pulsos e se deixa levar pelo Alzheimer. Se você ama – e amor não tem tamanho, acredite -, bom, esquecer não é uma opção.
            Mas você supera. Supera a morte, supera a frustração de um amor rejeitado, um fato trágico que te deixou de pernas para o ar. Você descobre que usou o verbo errado durante toda a vida, mas que ainda há tempo de se redimir – hora de superar os erros que você cometeu.
            Superar é lembrar todo dia, a cada momento, como se fosse um post it colorido perdido entre tantos outros que emolduram a tela do seu computador. Vez ou outra você acaba passando o dia sem tempo de ler o que está escrito naquele papel minúsculo, mas você sabe o que está escrito ali – e consegue viver sem ter que passar aquelas palavras para uma folha A4. Você se descobre parte do que viveu e de quem viveu com você. Segue em frente. Às vezes, você olha pra trás, e uma lagrimeta escorre sem te dar tempo pra engolir o choro e continuar a sua nova rotina. Mas lá está você, firme e forte, sabendo que a força vem de tudo que um belo dia fez você se sentir a criatura mais fraca da face da Terra.
            É difícil. Extremamente duro. É preciso morrer um pouco para entender que essa coisa de perder e ganhar é um ciclo sem fim – como a vida, como a morte, como tempo. O tempo – senhor de todas as coisas, aquele que dita sorrisos e sofrimentos, aquele que nos ensina tudo que devemos aprender nesse árduo processo de autoconhecimento chamado perda.
            No fim das contas, somos todos falhos – assim como a vida e a morte.
            Mas isso a gente supera. Pode crer. 

(Ouça Everglow, Coldplay) 

(Art Fucks Me)

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O trompete azul



                A cena era assim: logo no primeiro episódio da série - o episódio que conquistaria produtores e um público assíduo por novos vícios -, após o primeiro encontro com a garota que lhe tirara dos eixos, o cara foi lá e disse que a amava – ninguém é capaz de mensurar o tamanho deste erro em um relacionamento (principalmente em um relacionamento que ainda não começou). Mas antes disso, antes de dizer as palavras tão queridas por uns e tão temidas por outros, ele fez algo muito maior. Inquieto (não sei qual o seu signo), o personagem roubou o trompete azul que despertara a atenção da moça no primeiro encontro e apareceu com o objeto na mão e um sorriso assustado em sua janela.
                A partir daquele momento, eu entendi tudo. Tudinho mesmo.
                Aquilo era muito mais do que uma prova de amor. Aliás, essa definição é bem fraquinha – uma Jéssica da vida que pode até ser boa de briga, mas que não, não é nem um pouco eficiente.
                Ted Mosby (eis o nome do cidadão) me ensinou que o trompete azul é o nome científico do amor – ou talvez seja o contrário, não sei. Ele me mostrou que antes das tais palavras, é preciso ter entrega, coragem, resiliência – ah, e percepção de risco também. Mas além de tudo, o amor é estranho. Exótico. Emoldurável. Uma canção, talvez – várias canções. O amor é aquilo que a gente acha inútil, mas quando percebe, não consegue se livrar tão fácil. Eu que já escrevi tanto sobre o amor, que já roubei alguns trompetes azuis e não tive um final feliz como nosso Teddy Boy na série, ainda não entendo esse feitiço, essa macumba, essa doença, esse instrumento que me rouba o ar, que me faz delirar com o som, com a cor, com o peso. Mas eu sei, meus caros, que esse tal sentimento que é muito mais do que um sentimento, e é também muito mais do que a prova de que você sente e por isso não é um psicopata: é também a prova de que você se arrisca. Petisca. Não fica com fome.
                A gente sofre, sim. Ted sofreu por nove temporadas. Ted existe – todos nós temos um lado extremo-criativo-revolucionário-dramático-quase-chato-de-tão-eufórico dentro de nós. Ted teve perdas gigantes em sua vida. Mas o trompete azul, ah, ele foi até o fim. Até o último episódio. Até a última sentença.
                Vamos continuar sofrendo, entrando em eternas rehabs para esquecer, transformando dramas à la Nicholas Sparks (muito clean esse menino, o amor é infinitamente mais hard core) em caixinhas trabalhadas na decoupage cheias de lembranças bonitinhas, porém não menos destruidoras de lares. Essa é a vida, esse é o jogo, e só perde quem não joga.
                Só perde quem não tem coragem de roubar seu trompete.


Observação: CERTEZA que Ted Mosby é canceriano.
Observação 2: Uma salva de palmas para How I Met Your Mother.
Observação 3: Nem Friends nem HIMYM. As duas. Simplesmente. 

(Ouça Downtown Train, EBTG) 

(Google)

terça-feira, 17 de novembro de 2015

A problemática



                Talvez seja o meu cabelo. Ele é tão natural, sem cor, sem vida... Se eu jogasse um balde de tinta, talvez resolvesse o problema. Ou talvez eu ficasse mais ridícula ainda.
                Meu nariz, possivelmente. Alto e gordo. Às vezes, olho pra ele e vejo uma coxinha – isso quando não vejo um saco escrotal. Se eu cortasse, reparasse, afinasse, arrancasse... E então não teria motivos para me importar ao me olhar no espelho – não teria motivos porque não teria ar.
                Deve ser essa minha bunda. O pouco que deus me deu parece um pedaço de queijo. E tem essas listras que cobrem a bendita, e quanto mais eu tento empinar a diaba, parece que piora minha lordose.
                Meus olhos. Olha pra isso! Tudo desnivelado, não posso sorrir com olho aberto porque um sempre vai sair mais fechado. Aliás, o meu sorriso... Todo torto, desregulado, estirado, retardado, nem parece que já chorou as dores do siso.
                Meu jeito de dançar. Ah, deve ser isso, com certeza. Porque quando eu danço, não consigo me encaixar no quadradinho do “suficiente” nem fazer estripulias à moda stiletto. Eu piso no pé alheio, acerto copos de cerveja, destruo poses para fotografias, eu saio de mim. Você não pode entender. Ninguém pode entender.
                E as minhas roupas? Eu não sei seguir a moda, eu não tenho tempo, eu não tenho dinheiro, eu não tenho disposição. Não frequento a academia e como sem moderação. E a maquiagem? Eu vivo de batom vermelho, e quando você me beija eu te mancho inteiro, e você fica parecendo um palhaço – mas a palhaça sou eu! Não tenho unhas postiças para arranhar tuas costas na hora do bem-bom – como eu bem disse, eu como sem moderação.
                Ah, deve ser a minha família. Tão regrada, chata, tradicional! Deve ser o meu quarto, o meu jeito, o meu seio, o meu corpo inteiro, a minha alma cheia de devaneios, o meu gosto musical. Talvez eu seja o problema. Tarja preta para um faixa branca.
                Mas pelo menos eu não julgo. Não me reservo, não me preservo do que a vida me dá sem rodeios, sem essa coisa de levar a sério. O que pintar eu assino, assim como o poeta, assim como o destino. Se sou toda errada, deus me livre ser a certinha. Deus me livre ser a mocinha. Deus me livre ser a bonitinha.
                Deus me livre ser a zinha. Eu quero é ser asa. Ter asas. Voar.
                Coisa que a tua cabecinha não te deixa tentar. 

(Ouça Survivor na voz da deusa-louca-feiticeira Clarice Falcão) 

(Mariana Andrade)

domingo, 15 de novembro de 2015

A tragédia da opinião



                Que o verbo “opinar” está na moda, todo mundo já sabe. De repente, ficou mais fácil achar alguém com opinião do que com bunda (fazendo uma vaga conexão com aquele dito que eu sempre troco as palavras na hora de reproduzir). A princípio, ter o que pensar seria a maior prova de que não somos amebas que vivem dando rolês por aí.
                Até o dia em que ter o que pensar perdeu a importância para o ato de gritar o que se pensa – mesmo que você não pense absolutamente nada.
                Entre bilhões de litros de lama tóxica em Minas e outros litros de sangue que mancham as calçadas da romântica Paris, entre números desencontrados e alardes ou desprezos de uma mídia melindrosa, só existe mesmo a palavra tragédia. A mesma tragédia que nesse momento assola as tão famigeradas e clichês redes sociais – aquelas que você usa para dizer que o seu dia foi uma droga, que o trânsito está infernal e que a conta de luz não para de subir. A tragédia da opinião faz com que todos nós – que não estamos em Minas, Paris ou em qualquer outro lugar assolado pela violência neste momento – sejamos vítimas. Vítimas de nós mesmos.
                A necessidade de expressar a sua opinião é muito mais forte do que desejar paz e conforto aos corações abalados pela tragédia, do que doar um galão de água que seja para uma família mineira, do que enxergar as mazelas que estão bem na sua frente no dia-a-dia mas que você não tem tempo pra ajudar a resolver. Expressar-se é banal. Hoje em dia, não se trata de pensar, de escrever, de estudar, de imaginar, de pintar a cara, vestir a camisa, seja o que for. Hoje em dia, a sua opinião é o seu berro de existência – e no momento, não vejo nada de bom nisso. Não vejo nada de bom em usar um espaço universal para propagar o ódio, o extremismo a tristeza. Não vejo nada de bom em criar competições: quem opina melhor? Quem tem mais curtida? Qual dessas tragédias é mais importante?
                Tem vidas lá fora morrendo, se perdendo por conta do terror, se afogando na lama dos outros. Tem gente se escondendo atrás do medo de sair de casa, de praticar sua religião, de assumir seu gênero. Tem gente com medo de viver. E por isso, nada diz, nada grita, nada expressa. Porque dói tudo. E esse berro é pra um universo disposto a se resumir num ombro amigo, num ouvido solícito, numa alma compreensiva.
                Enquanto isso, tem gente com medo de não ser ouvido. E por isso, há tanto berro ecoando entre execuções no spotify e palavras de jornalistas na tevê. Gente que precisa se expor, que precisa intensificar sua própria dor – que apesar de incomparável, não deve ser superior à dor de quem realmente precisa de ajuda no momento. Gente mesquinha, pequena, digna de pena. Covarde demais pra enfrentar o sangue e a lama, pra rezar por tudo e por todos, pra se sensibilizar por um mundo aparentemente perdido como todos nós.
                Hoje eu rezo por Minas, por Paris, pelo México, por Fortaleza, por todos os lugares atingidos pela violência e por você que, dentro da sua necessidade tão grande de gritar, acaba se esquecendo de que tem horas que o silêncio é capaz (lê-se suficiente) de falar tudo que deve ser dito. 

(Ouça o silêncio)

 (Bonsai Madness by Alex Sirén)

sábado, 7 de novembro de 2015

Tinder e a arte do encontro



                Resolvi me aplicar ao amor. Não, acho que devo refazer essa frase, já que esse tipo de amor carnal desgasta, violenta, suga energias e ainda tira a sua fome (que pecado, meu deus). Na verdade eu resolvi me jogar nas melhores e mais modernas tentativas de fugir do tédio e do sofrimento.
                Eu fui para o Tinder.
                Porque você sabe: se você quer compromisso, você há de correr para o bom e velho Bate-papo UOL, mais conhecido como o santo casamenteiro da Internet. Mas em tempos de indiretas metralhadas a todo instante e sofrências constantes por conta da solidão rasgante dos dias atuais, um app foi criado há algum tempo para facilitar encontros e ainda promover a democracia a partir do momento em que dá ao usuário a liberdade de escolher com quem ele quer conversar – ou torcer para combinar.
                Antes de citar a diversão que habita este aplicativo, precisamos frisar a necessidade do encontro – e não abro parênteses para os físicos ou virtuais. Acontece que por mais que caibamos muito bem na carapuça do tédio, o que queremos mesmo é bem específico. A necessidade do amorzinho gostoso e de “dormir de conchinha” é avassaladora. Quase assassina. E por mais livre e descolado que você tente ser, aguentar-se sem o apoio de alguém que tope um amor recíproco mesmo sabendo que não é você quem topa isso, mas é isso que topa você, bom, só essa ideia de solidão já te mata aos poucos.
                O encontro virou uma arte. Aliás, sempre foi – desde quando personagens de um filme se esbarram no meio da rua e começam um trelelê infinito que dá pano pra manga durante quase duas horas. O Tinder também promove essa arte, e por isso deve ser tão respeitado – o problema é que, no aplicativo, é como se o encontro virasse uma tela pintada por Romero Brito. Acho que deu pra entender que, com ou sem app, viveremos em busca de um romanceco barato que nos infle o ego, que nos dê uns momentos lindamente fotografáveis enquanto encostamos o rosto na janela e nos imaginamos num clipe da Norah Jones e que depois do fim, nos jogue num abismo tão grande que o nosso tesão por sofrimentos arcaicos do tipo se torne definitivamente uma doença.
                Agora vamos ao ritual de magia negra – porque se fosse a macumba que vocês tanto zoam/desrespeitam/abominam porém praticam, não seria tão desgastante quanto usar a nossa chaminha laranja. Aliás, é laranja ou vermelha?
                O Tinder é dividido em duas etapas. A primeira, na minha opinião, é a melhor de todas. É quando você escolhe – um processo de triagem mesmo.
                Esse é bonito. Mas óculos com lente colorida não dá.
                Esse usa pau de selfie.
                Esse vai dar trabalho.
                Esse precisa tomar um banho urgentemente.
                Esse usa boina. É legal.
                Esse usa pau de selfie.
                Esse é maravilhoso.
                Esse é um pênis ambulante.
                Esse usa pau de selfie.
                O processo parece desgastante, mas Deus, como é divertido. Escolher te dá a sensação de que você está no controle, e isso é um presente que o Tinder nos dá.
                Aí você deu like.
                O match rolou.
                Vamos para a conversa.
                Segundo as regras de etiqueta, o homem deve puxar assunto. Mas regras foram feitas para serem quebradas.
                A não ser que você tenha preguiça de iniciar a conversa.
                Vamos à segunda (e tediosa) etapa. O papo.
                Interrogatórios, elogios aleatórios , “quem você levaria para uma ilha deserta”. Uma conversa vazia, porém educada, o que por si só é um milagre. Às vezes você dá sorte. Às vezes, dá sorte realmente e desinstala o Tinder até a próxima fila de banco.
                Acontece que isso nos faz questionar o amor. Mais do que questionar o amor, questionamos a nossa missão nesse jogo de cartas marcadas onde a nossa felicidade baseada no princípio “é impossível ser feliz sozinho” do velho Jobim está em jogo. Questiona-se a necessidade de manter-se acompanhado e os N motivos para estar acompanhado: a intolerância à solidão, o medo da morte, o status, a alergia a gatos, os sonhos da infância, as perguntas de fim de ano, a aversão à casualidades (em alguns casos), o relógio psicobiológico. Apesar de ser suficiente na essência, bastar-se não é tudo. Há todo um processo de desapego que talvez só o Tinder seja capaz de resolver – ou não. Depende da mentalidade do usuário, do objeto de procura, da necessidade.
                Enquanto isso, esperamos sentados nosso match com o gato da hora.
                Ou fingimos esbarros hollywoodianos no meio da rua. 

(Ouça The Nearness of you, Norah Jones) 

(Alessio Rodiani)