O
pai foi deixar a filha na creche, mas como estava fechada, foi embora levando a
menina. Distraído, ao invés de deixar a neném em casa com a mãe ou qualquer adulto
de confiança, passou direto e foi trabalhar. Com a criança no carro. Sem se
lembrar de sua presença.
Esse
tipo de tragédia tem acontecido tão frequentemente que cada caso parece velho –
“ah, mas isso que você está dizendo aconteceu há dois meses, foi com aquele pai
de São Paulo, ou do Rio, ou de Minas, já não sei...”. A verdade é que vivemos
no automático. Passamos direto. E não é por maldade, crueldade, alienação.
Talvez possamos colocar uma dose básica de estafa nesse caldeirão, só pra dar
um gosto. É tudo distração. Esquecimento. Olhos fechados. Perda de sentidos.
Rotina.
O
caso do pai que esquece a filha no carro e acaba vítima da própria tragédia que
cria sem querer não é a única perspectiva que temos da maldição da distração –
este talvez seja o caso mais absurdo, mas não desconsideremos os outros. Há
quem se esqueça de regar de plantas. De alimentar o bicho de estimação. De
telefonar para aquela pessoa querida e frisar tal adjetivo. De pausar a mente
por alguns instantes para rever conceitos, pré-conceitos, a fim de descobrir o
que é real e o que é ilusão. De tomar decisões coerentes (mesmo que acarretem
em certas perdas). De pensar no presente, lembrando que o passado é só um
ângulo reto que se entortou com o tempo, e o futuro é a vida que nem é vida
ainda – portanto, é como se qualquer plano pudesse ser abortado a qualquer
instante, porque afinal de contas ainda é plano, não foi formado direito, mal é
um feto (macacos e igrejas me mordam).
Nosso
maior defeito é acreditar que tudo na vida é uma questão de praticidade. Mas é
que nos esquecemos de que, ao sermos práticos, acabamos mostrando o que somos
de verdade: um bando de desesperados. Tomamos comprimidos para afugentarmos
nossos problemas. Afogamos mágoas em copos de álcool, como se mágoas fossem
bactérias. Baseamos a paz naquela velha (e tosca) frase: “quando um não quer,
dois não brigam”. Dispensamos clichês porque ora, são clichês! Mas mesmo assim
repassamos frases heroicas, sorrimos para câmeras indiscretas, julgamos do
outro lado da janela. Somos paranoicos. Não nos permitimos amar, confiar, agir.
Só reagir. Seguir a linha. Fazer o que mandam. Nem que pra isso tenhamos que
nos desligarmos de nós mesmos. Nem que pra isso tenhamos que ligar o piloto
automático (que por acaso é um botão muito diferente do “foda-se”, que requer
força humana para ser acionado). E é aí que nos distraímos, programados, pragmáticos,
vítimas de nós mesmos. A tragédia da vida real é a própria vida para quem não se
estoura, não se desloca, não se multiplica. O céu é o limite para quem só
procura estrelas.
Por
isso, despertemos. Despertemos desse sono profundo da rotina e dos mesmos
problemas, das mesmas notícias, dos mesmos caminhos. Quebremos o gelo. Errar,
de vez em quando, porque é errando que se aprende: como já foi dito antes,
nunca, em hipótese alguma dispense um bom clichê. Que não nos esqueçamos de
pegar aquele outro caminho, de fazer aquele favor para o vizinho, de ligar para
o amigo, de se preocupar com o comportamento do filho, de mostrar ao
companheiro ou à companheira que o amor existe e sempre será quente (nunca
requentado), que nunca nos esqueçamos de seguir o fluxo da vida por nós mesmo.
E quando os olhos pregarem, quando a vista embaçar, quando aquele fio de cabelo
comprido no paletó parecer mais interessante do que o que realmente interessa,
que estalemos como nossos ossos.
A
vida não é só tragédia para os que ficam. Mas sim, a vida é pura tragédia para
aqueles que simplesmente se esquecem.
De
viver.
(Ouça Dreams, Fleetwood Mac)
(Yu Yamauchi)
Nenhum comentário:
Postar um comentário