domingo, 3 de agosto de 2014

A terceira pessoa



Preste atenção: conjugue o verbo “escrever”. Em qual tempo, professora? Fica ao seu critério. Ah, eu escrevo, tu escreves, ele escreve. Ele quem? Ele, ora. Ele quem? Ah, não sei, um cara aí, uma pessoa, qualquer pessoa. Que pessoa? Primeira, segunda, terceira...? (pausa para contar nos dedos) Ah, acho que é a terceira. E você conhece a terceira pessoa?
               Eu não, professora. A senhora só pediu pra eu conjugar um verbo. Me tira dessa.
               Pois devia conhecer. A terceira pessoa é o sujeito mais interessante que se relaciona com o verbo. A primeira pessoa é boba, cheia de frescuras, de filosofias, de tolices absurdamente egoístas e incompreensíveis. Da segunda pessoa ninguém gosta, já percebeu? O “tu” não combina com o século XXI; nas cabeças descompensadas, é coisa de índio, e dizem que o índio também não combina com o século XXI, o que faz as cabeças compensadas rezarem pelo dia em que descobrirem que o “vc” não combina com coisa alguma, nem mesmo com o “você”. Mas a verdade é que o “tu” dá medo. É como se você estivesse apontando seus quatro dedos para o outro, para aquele que está ao seu lado. Quatro dedos para o apontado, um dedo para o apontador; que versão mais bizarra e desrespeitosa (e um tanto compacta, diga-se de passagem) do velho cinco contra um.
               Para os maldosos (incluo os hipócritas nessa leva), a terceira pessoa sugere fofoca, dúvida, estranhamento. O ele/ela/você – provando que o grande problema com o “tu” é a falta de intimidade com a "formalidade" – é o elemento mais interessante da escrita. Todos querem ser narradores, e querem narrar suas próprias vidas, sempre exagerando na dose do heroísmo e da falsa modéstia. Quando alguém quer falar de si mesmo mas dispensando a primeira pessoa, usa-se o velho truque do amigo (“um amigo meu...”). Mas quando alguém se dá ao trabalho de observar o outro sem fazer comparações com a própria vida, aliás, esquecendo o seu próprio eu, uau, é admirável. Ressalvas são sempre bem vindas – e encantamentos também, até porque os narradores também não são de ferro. A terceira pessoa é aquela que o narrador quer ser um dia, ou que simplesmente quer ao lado dele. É imperfeita, humana, às vezes monstruosa – ossos do ofício. Engano-me quando penso que utilizar a terceira pessoa na escrita faz o narrador se distanciar de si mesmo, o que parece ser digno de aplausos. É justamente ao se permitir observar o outro (sem apontar, lógico) que o narrador se aproxima ainda mais do seu próprio eu. O melhor espelho que existe é o outro, porque o outro é tão frágil e efêmero quanto nós mesmos. O eu nunca será melhor do que o você. E o tu... Coitado do tu.
               Ah, sim, existem o nós, o vós, o eles. O plural é um parque de diversões; ora causa histeria, ora causa vertigem. O "nós" anda sofrendo certo bullying, é confundido com as "DRs", vive rejeitado injustamente. No fim das contas, escrever em qualquer pessoa, escrever sobre qualquer pessoa, ah, é um ato de nobreza. Escrever é um ato de nobreza. Conjugar é um ato de nobreza... Tudo, todos os nossos reflexos, todas as letras que usamos, todas as palavras das quais nos apropriamos, é tudo nobre, real, verdadeiro. Escrever sobre si mesmo requer uma profundidade que pode causar afogamento. Escrever sobre o outro faz você dar aquele salto como se não respirasse há anos... Ou seria o contrário? Cabe ao escritor definir o que vale mais a pena.
               Retomando o prelúdio: conjugue o verbo frigir. Em qualquer tempo, em qualquer pessoa, em qualquer situação. Divirta-me. 

(Ouça You and I, Michael Bublé)

(Clarissa Gonzalez)

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