segunda-feira, 21 de julho de 2014

O míssil



               Dizem que os aviões são o transporte mais seguro do mundo. Além de sistemas ultramodernos e outras coisas que o meu vocabulário não permite dizer por pura falta de conhecimento sobre o assunto, a principal teoria que ratifica essa ideia é a de que acidentes de carro, ônibus ou qualquer outro transporte terrestre acontecem tanto que a mídia quase não mostra. Mas quando se trata de um “desastre aéreo”... Mesmo sendo, é, como é que chamam, “um caso isolado”, geram um misto de medo, descontrole e pavor – o que poderia ser tratado com aspereza pelos hipócritas que acreditam que essa comoção toda só acontece porque se trata de um acidente aéreo, ou seja, que acontece com pessoas ricas (ou que têm dinheiro para comprar uma passagem aérea, que não é nada baratinha, venhamos e convenhamos), ou seja, gente retardada é um problema sério.
               Não, não pretendo fazer um apanhado sobre todos os desastres aéreos ocorridos até aqui. Também não tenho medo de voar; enfim, não é sobre isso que quero falar. O que mais me espantou na queda/explosão/crime/abatimento/“acidente” com o voo MH17 da Malaysia  Airlines, além do fato de ter sido um míssil o que causou toda a destruição (aliás, nem sei se isso já se confirmou, mas meus instintos sherlokianos apontam exclusivamente para essa direção) é de como a vida é esquisita – mais esquisita do que a própria morte, por sinal. Porque todo mundo sabe que vai morrer um dia, e saber não quer dizer que estamos preparados, mas sim que a gente já sabe que vai acontecer, então nem adianta se desesperar. Mas a gente nunca sabe quando (e como) vai deixar de viver. Se é num voo abatido por um míssil, num viaduto que despenca (como em Belo Horizonte no mês passado), se é num mergulho numa gruta linda e obscura, se é nos dentes de um tubarão esfomeado, num assalto à mão armada ou num acidente de carro, desses que dificilmente passam na TV – a não ser que esteja devidamente representado por números, estatísticas, coisas mais frias que os nossos corpos sem vida.
               Eu li uma das entrevistas com os parentes das vítimas. Era o marido de um funcionário da OMS que estava no voo, e que morreu, obviamente. O viúvo, que ganhou certa notoriedade nos portais de notícias daqui, é brasileiro. Conforme ele falava do seu relacionamento com seu falecido marido, era como se a história fosse próxima a mim, como se ele estivesse olhando nos meus olhos e se abrindo comigo naquele momento, me fazendo entender todos os seus sentimentos. Ele falava do cuidado do companheiro de sempre avisar quando chegava a algum lugar, do sorriso dele, dos planos, do ano maravilhoso que estavam tendo. E de repente, o chefe do seu marido o telefona comunicando o desaparecimento do avião. Como uma brincadeira, uma piada de mau gosto, um pesadelo. Algo que a mente nunca vai ser capaz de captar.
               Eu sei, milhares de pessoas morrem a todo instante, e sempre há os que ficam. A morte leva uns e deixa os outros em carne viva. Faz a vida se esvair feito areia pelos nossos dedos. E o que a gente faz? Bom, a gente só sabe o que tem que fazer. Tem que juntar os cacos, refazer as ideias, continuar. Continuar? Quem continua algo que acaba? Quem é capaz de tamanha audácia? E o amor que fica, e as lembranças, e o telefonema pra dizer que chegou bem, e o beijo de boa noite, e os segredos, e as histórias, e os planos, e as conversas, e os momentos, e o resto? O resto é a vida que fica. Despedaçada. Estranha. Só.
               A morte é um míssil. Um míssil bem pior do que o russo (diz o Obama) que derrubou aquele avião. Um míssil que mata em terra firme ou nos ares; não importa. Ele tira o ar. Tira a vida. Derruba tudo, faz uma zona, “like a wrecking ball”. Ninguém sabe quando, ninguém sabe onde, ninguém sabe por que. Ironicamente, é a vida. E o pior é saber que um dia todos nós seremos vítimas desse míssil – bom, de certa forma, já somos.
               Não importa como a morte vem, nem o que resta depois dela. Aliás, ela faz com que mais nada importe. Portanto, aproveitar a vida é uma prioridade estranha e aparentemente inconsequente, porém obrigatória. Muitos falam que a vida é um milhão de coisas: é bela, uma caixinha de surpresas, um espetáculo, um fenômeno inexplicável, ah, essas coisas todas. Mas se esquecem de dizer o que ela é realmente é: a vida é areia. Areia que corre pelas nossas mãos. Que dança dentro de uma ampulheta. E é justamente quando fechamos as mãos que sentimos o vazio, a ausência, a palavra intraduzível: a saudade.
               Posso terminar soltando um caloroso “Carpe Diem”, mesmo achando essa frase o maior clichê de todos os tempos (superando o eternamente defendível “eu te amo”). Mas sabe de uma coisa? É isso que nós temos que fazer. Aproveitar o que nos resta, o que ficou, o que virá. Nunca juntar os cacos; deixa-los sempre quebrados e espalhados, bem à mostra, até que venham outros cristais.
               Bom, ninguém nunca nos disse que somos feitos de vidro. 

(Ouçam Everybody hurts, R. E. M. - desculpa se só consigo pensar nessa música quando penso em morte) 


(James Nares)

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