domingo, 27 de julho de 2014

Aquele domingo



Acordar cedo. Fazer aquele passeio. Ir para aquele lugar lindo, aquela praia, aquela serra, ver aquele filme que você está se programando há semanas para ver, ou desde que os estúdios anunciaram as gravações. Fazer aquele churrasco. Reunir aquelas pessoas. Sentir-se aquela pessoa que você não se sente há anos. Tirar aquelas merecidas férias em vinte e quatro horas – porque o sábado não conta, o sábado voa antes de dizer “presente” enquanto a semana ainda está fazendo a chamada. Ler aquele livro, comer aquela comida, fazer aquilo que você acredita que vai fazer você se sentir daquele jeito que você ama. Ouvir aquela música. Dançar aquela dança. Rir daquela velha piada. Contar aquele velho caso. Estrear aquela roupa. Contar aquela velha mentira – ou inventar aquela boa verdade. Viver aquela vida que você só pode viver aos domingos.
               Acordar tarde. Ou melhor: não acordar. Dormir durante todo o domingo, mas dormir daquele jeito. Usar aquele moletom. Explorar o controle remoto daquele jeito que as pilhas quase pedem para sair. Abraçar aquela almofada – ou aquela criatura, dependendo da sorte do sujeito. Manter os olhos colados, de preferência.  Mandar o relógio ir se danar. Chutar o pau da barraca. Hibernar. Aquele urso. Aquele cidadão.
               O domingo é mágico. Ofendam a programação da tevê, entediem-se com a suposta falta do que fazer, pensem que este é um ótimo dia para morrer...
               Mas não reclamem se na segunda-feira o arrependimento bater.
(Ouça Tales from the beach, Incognito)

(Tumblr)

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Agente é a gente



A gente gosta de tudo
Agente não sabe gostar
A gente não conhece o mundo
Agente tem o mundo como lar
A gente não gosta de números
Agente é 007
A gente coleciona problemas
Agente coleciona mulheres

A gente cheira a lavanda
Agente usa perfume exclusivo
A gente adora a varanda
Agente não sabe o que é isso
A gente quer a senha do wi-fi
Agente já nasce sem fio
A gente ama rosas e castiçais
Agente não precisa de feitiço

A gente é junto
Agente é separado
Enquanto a gente vive
Agente vive entediado
Agente é herói
A gente é culpado
Mas agente vive por viver
E a gente vive pra morrer um dia
sabendo que o agente
nunca vai nos proteger.

Mas a gente o protege,
pode crer. 

(Ouça Hey, Pixies) 

(Tony Von Horn)

segunda-feira, 21 de julho de 2014

O míssil



               Dizem que os aviões são o transporte mais seguro do mundo. Além de sistemas ultramodernos e outras coisas que o meu vocabulário não permite dizer por pura falta de conhecimento sobre o assunto, a principal teoria que ratifica essa ideia é a de que acidentes de carro, ônibus ou qualquer outro transporte terrestre acontecem tanto que a mídia quase não mostra. Mas quando se trata de um “desastre aéreo”... Mesmo sendo, é, como é que chamam, “um caso isolado”, geram um misto de medo, descontrole e pavor – o que poderia ser tratado com aspereza pelos hipócritas que acreditam que essa comoção toda só acontece porque se trata de um acidente aéreo, ou seja, que acontece com pessoas ricas (ou que têm dinheiro para comprar uma passagem aérea, que não é nada baratinha, venhamos e convenhamos), ou seja, gente retardada é um problema sério.
               Não, não pretendo fazer um apanhado sobre todos os desastres aéreos ocorridos até aqui. Também não tenho medo de voar; enfim, não é sobre isso que quero falar. O que mais me espantou na queda/explosão/crime/abatimento/“acidente” com o voo MH17 da Malaysia  Airlines, além do fato de ter sido um míssil o que causou toda a destruição (aliás, nem sei se isso já se confirmou, mas meus instintos sherlokianos apontam exclusivamente para essa direção) é de como a vida é esquisita – mais esquisita do que a própria morte, por sinal. Porque todo mundo sabe que vai morrer um dia, e saber não quer dizer que estamos preparados, mas sim que a gente já sabe que vai acontecer, então nem adianta se desesperar. Mas a gente nunca sabe quando (e como) vai deixar de viver. Se é num voo abatido por um míssil, num viaduto que despenca (como em Belo Horizonte no mês passado), se é num mergulho numa gruta linda e obscura, se é nos dentes de um tubarão esfomeado, num assalto à mão armada ou num acidente de carro, desses que dificilmente passam na TV – a não ser que esteja devidamente representado por números, estatísticas, coisas mais frias que os nossos corpos sem vida.
               Eu li uma das entrevistas com os parentes das vítimas. Era o marido de um funcionário da OMS que estava no voo, e que morreu, obviamente. O viúvo, que ganhou certa notoriedade nos portais de notícias daqui, é brasileiro. Conforme ele falava do seu relacionamento com seu falecido marido, era como se a história fosse próxima a mim, como se ele estivesse olhando nos meus olhos e se abrindo comigo naquele momento, me fazendo entender todos os seus sentimentos. Ele falava do cuidado do companheiro de sempre avisar quando chegava a algum lugar, do sorriso dele, dos planos, do ano maravilhoso que estavam tendo. E de repente, o chefe do seu marido o telefona comunicando o desaparecimento do avião. Como uma brincadeira, uma piada de mau gosto, um pesadelo. Algo que a mente nunca vai ser capaz de captar.
               Eu sei, milhares de pessoas morrem a todo instante, e sempre há os que ficam. A morte leva uns e deixa os outros em carne viva. Faz a vida se esvair feito areia pelos nossos dedos. E o que a gente faz? Bom, a gente só sabe o que tem que fazer. Tem que juntar os cacos, refazer as ideias, continuar. Continuar? Quem continua algo que acaba? Quem é capaz de tamanha audácia? E o amor que fica, e as lembranças, e o telefonema pra dizer que chegou bem, e o beijo de boa noite, e os segredos, e as histórias, e os planos, e as conversas, e os momentos, e o resto? O resto é a vida que fica. Despedaçada. Estranha. Só.
               A morte é um míssil. Um míssil bem pior do que o russo (diz o Obama) que derrubou aquele avião. Um míssil que mata em terra firme ou nos ares; não importa. Ele tira o ar. Tira a vida. Derruba tudo, faz uma zona, “like a wrecking ball”. Ninguém sabe quando, ninguém sabe onde, ninguém sabe por que. Ironicamente, é a vida. E o pior é saber que um dia todos nós seremos vítimas desse míssil – bom, de certa forma, já somos.
               Não importa como a morte vem, nem o que resta depois dela. Aliás, ela faz com que mais nada importe. Portanto, aproveitar a vida é uma prioridade estranha e aparentemente inconsequente, porém obrigatória. Muitos falam que a vida é um milhão de coisas: é bela, uma caixinha de surpresas, um espetáculo, um fenômeno inexplicável, ah, essas coisas todas. Mas se esquecem de dizer o que ela é realmente é: a vida é areia. Areia que corre pelas nossas mãos. Que dança dentro de uma ampulheta. E é justamente quando fechamos as mãos que sentimos o vazio, a ausência, a palavra intraduzível: a saudade.
               Posso terminar soltando um caloroso “Carpe Diem”, mesmo achando essa frase o maior clichê de todos os tempos (superando o eternamente defendível “eu te amo”). Mas sabe de uma coisa? É isso que nós temos que fazer. Aproveitar o que nos resta, o que ficou, o que virá. Nunca juntar os cacos; deixa-los sempre quebrados e espalhados, bem à mostra, até que venham outros cristais.
               Bom, ninguém nunca nos disse que somos feitos de vidro. 

(Ouçam Everybody hurts, R. E. M. - desculpa se só consigo pensar nessa música quando penso em morte) 


(James Nares)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Você sabe com quem está falando?



               Eu não sei. Mas vamos lá; posso tentar adivinhar.
               Creio que seja com alguém que não importa de onde veio ou para onde vai, sempre vai dar trabalho. Vai querer chamar atenção, colocar lenha na fogueira, fazer cena, espetáculo, armação. Talvez passe vergonha. Talvez provoque aquele estranho sentimento de pena. Talvez não provoque nada; simplesmente passe despercebido.
               Pode ser com alguém aborrecido, cheio de problemas, de dívidas, de dúvidas, de incertezas. Alguém que não aguenta mais o peso de se sentar na cabeceira da mesa. Alguém que vive para resolver pendências, mas que acaba acumulando dezenas, centenas, milhares de outras pendências. Alguém que já vive no embalo do stress – e por isso mesmo não sabe viver uma vida tranquila, não suporta ouvir a palavra “paz”, mas que não vive sem seu calmante de guerra dentro da bolsa. Alguém cansado, exausto, complexo, incompleto, sem tempo, sem lenço, cheio de documento. Alguém que há tempos não ganha um bom abraço.
               Alguém vazio. O tipo de pessoa que tem como esporte preferido pisar em ovos. Pessoa sem alma a refletir no espelho; um vampiro, talvez. A vida passa e pronto; o que é a vida além de um ponto final? Ninguém conhece. Ninguém entende. Ninguém explica. Alguém cansado de tentar se explicar. Alguém desesperado por respostas.
               Pode ser um fulano qualquer, atrasado, humilhado, agredido pela agenda, pelo destino, pelas pedras no caminho. Alguém que chorou com um comercial de margarina que acabou de passar. Que foi trocado, traído, enganado, abandonado, deixado de lado, e tudo que ganhou de conselho foi um “deixa pra lá”. Que perde horas e horas planejando sua vida, mas que já perdeu o fio da meada há tempos. Que humilha porque se sente humilhado, mas que não se permite entender o alheio, o que não lhe pertence. É, talvez eu esteja falando com um pobre coitado.
               Não, não consigo adivinhar. Mas imagino que seja com alguém que não sabe responder a própria pergunta. Por isso, aqui vai: você sabe com quem está falando? É, também não sei. Vamos discutir isso?
               Mas agora não. Vamos falar de futebol.
               Ou sobre a novela.
               Ou sobre...
                

(Ouça Heal the pain, George Michael) 

(Tumblr)

terça-feira, 15 de julho de 2014

Por trás das telas



               Autopromoção, layout perfeito, publicidade e principalmente: muito, mas muito lixo virtual. A conversa de hoje extrapola os limites da mesa de bar. Hoje eu quero uma conversa franca, com olhos nos olhos - mesmo que seja virtual. Aliás, esse mundo por trás das telas de led/lcd/lsd tem mais é que ser desconstruído mesmo – e caso você pense que desconstruir é o mesmo que destruir, bom, volte cinco casas e só me procure quando o dado girar a seu favor.
               Eu vejo muita gente ganhando a vida com a internet – ou melhor, com a blogosfera. Eu sou do tempo em que blog era diário pessoal, aquele que tinha uns poucos acessos, mas que a gente caprichava (com os poucos recursos que tinha) para fazer um negócio bonito, como se esse fosse o nosso mais novo papel na sociedade. Um tempinho passou... Não muito, mas o suficiente pras coisas mudarem na velocidade da luz (ou quem sabe de um cometa, como diz o pagode porque sim, eu sou multicultural, eu sou do povo, eu sou a Regina Casé). Admiro quem conquistou seu espaço (e ainda conquista), mas não posso fechar os olhos pro lixão a céu aberto que a gente encontra nas URLs da vida.
               Sim, meu blog não faz o menor sucesso. Nunca recebi propostas de parceria, nunca fui parar em algum portal de notícias ou nem mesmo fui reconhecida por desconhecidos. E não vou ser hipócrita de dizer que não admito a ideia de que existe gente no mundo que ganha dinheiro com o que não me faz ganhar nada além do prazer de divulgar o que eu penso. Mas me orgulho dele e nunca o largaria, nem mesmo o venderia. E se tem algo que muito me incomoda é essa gente que se diz escritor, cronista, blogueiro de primeira classe. Blog de letras, de moda, de dicas culturais... E quando você abre a embalagem, vê que o conteúdo não é nada do que imaginou. Como se a internet fosse terra de ninguém. E infelizmente é.
               Você pode até dizer que existem problemas muito maiores para eu me preocupar – e devem existir mesmo, não duvido nada. Mas o problema é que a internet deixou de ser sinônimo de diversão e lazer há muito tempo. Existe um mundo por trás das telas, eu já disse. Um mundo com coisas boas e ruins, uma espécie de extensão do nosso mundo físico, concreto. A blogosfera é tão valorizada quanto o jornal na época da ditadura – digo isso porque hoje em dia é mais fácil reconhecermos o valor de um portal de notícias na internet do que de um jornal de papel. Desrespeitar a língua portuguesa é o de menos. Eu vejo gente que propaga ignorância, que promove mal entendidos, que confunde internautas. Gente que acumula adjetivos e competências, mesmo sendo absurdamente incompetente. Preconceito, covardia, censura, estupidez. Gente que não conhece o significado da palavra respeito, e que desvaloriza completamente a sua liberdade de expressão.
              Não dá pra mudar o mundo – nem o físico e nem o virtual - assim, do nada. Mas dá pra mudar esse quadro, e todos os outros que incomodam. Compartilhar pensamentos, opiniões e informações não requer censura, mas sim sensibilidade e respeito ao próximo e a si mesmo, além da confiabilidade. O ato de compartilhar é uma dádiva que não merece ser desperdiçada.
               E quanto aos escritores de meia tigela, por favor, desçam do salto. Aqui é a blogosfera, onde a gente é de todo mundo e todo mundo é da gente – valeu, Tribalistas. Mudar faz parte, ou será que vocês ainda não perceberam isso?

(Ouçam Sad, sad world, Jamie Cullum)

(Tumblr)