Estou
na rua. Enquanto desfilo na calçada e tento distrair a mente, o mundo ao redor
parece tão inocente que não percebe minhas traquinagens. Traquinagens.
Trakinas. Aquele biscoito gostoso, porém duro, duro, já me deu tanta dor de
cabeça, mas eu como, como devagar, como rápido, como porque nossa, eu amo
aquele biscoito. Ah, sim, o desfile. Ora tem música na minha cabeça; ora tem um
eco estranho, como se alguém tivesse gritado, mas foi embora sem olhar pra
trás, sem olhar pra mim, sem olhar, atravessou a rua e foi atropelado, ninguém
viu atravessar, ninguém viu o corpo estirado no chão, foi um fantasma, foi um
devaneio, foi algo que eu não sei explicar. Quando é música, eu canto sozinha;
estou num videoclipe dirigido e estrelado por mim mesma, e todos que passam por
mim são meros figurantes numa rua cheia de câmeras escondidas, e eu apareço na
tevê com a pele lisa, com voz de diva, com jeito de rainha de um reino distante,
onde todos tentam distrair a mente enquanto desfilam na calçada.
Eu
versifico meu caminho. O semáforo, a espera pelo sinal vermelho, a pressa dos
carros enquanto aproveitam o sinal verde, o morador de rua pedindo dinheiro e
eu com pena, mas sem saber se ajudo ou não, a loja de doces que me enfeitiça e
me motiva a gastar moedas perdidas em minha bolsa, os que esperam o ônibus que
nunca vem, ou que vem lotado, com um motorista enfezado e com passageiros
apressados, o cheiro do salgado da pastelaria onde a música-ambiente é a língua
estranha e incompreensível dos funcionários orientais, o sol que toca minha
pele e salienta uma digital que se apodera de uma das lentes dos meus óculos,
me fazendo procurar mentalmente algum lenço dentro da bolsa capaz de limpar
essa digital e melhorar minha visão, mas a minha visão está conturbada demais,
o sol atrapalha, a luz atrapalha, a rua atrapalha, a mente atrapalha, eu atrapalho,
eu me atrapalho, eu quero sair correndo; versifica isso aí, mocinha.
Tento
desvendar os pensamentos alheios, e creio em agendas descontruídas, em canções
mal cantadas, em memórias da noite anterior que pode ter sido de amor ou de
ódio. Penso em minha agenda: a rotina de sempre, nada de mais. As minhas
canções nunca são mal cantadas; eu sou a diva dos videoclipes, lembra? Minhas
memórias. A noite anterior. Dormi. Noites de amor. Que termo cafona. Todas as
noites são noites de amor, porque em todas as noites eu amo, amo quem eu
quiser, amo mesmo distante, mas gosto de amar de perto e sempre, sempre estou
perto de quem amo; não sou nada sem essa rotina. Ódio? Ora, quem não odeia os
problemas, as dívidas, as incertezas? Todos. Eu também. Eu odeio odiar. Odeio
tudo que não posso alcançar. Mas não gosto de odiar à noite. Dá constipação.
As
lojas de roupas. As vitrines. Todas lindas. Me imagino tocando os manequins e
automaticamente vestida com eles, pálida como eles, seca como eles, morta como
eles. Sedas, estampas, listras, tricôs, jeans, moletons, polainas... Nua. Por
favor. Arranquem minhas roupas. Arranque
minha roupa. Me deixe correr nua no meio da rua. Me deixe rimar em plena prosa.
Me deixe em paz, seu Verso. Seja meu inverso só por alguns instantes. Eu só quero
seguir minha linha, chegar a algum lugar.
Cheguei.
Não há mais o que rimar.
(Ouça Hometown glory, Adele)
(Tumblr)
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