quinta-feira, 26 de junho de 2014

Na rua



               Estou na rua. Enquanto desfilo na calçada e tento distrair a mente, o mundo ao redor parece tão inocente que não percebe minhas traquinagens. Traquinagens. Trakinas. Aquele biscoito gostoso, porém duro, duro, já me deu tanta dor de cabeça, mas eu como, como devagar, como rápido, como porque nossa, eu amo aquele biscoito. Ah, sim, o desfile. Ora tem música na minha cabeça; ora tem um eco estranho, como se alguém tivesse gritado, mas foi embora sem olhar pra trás, sem olhar pra mim, sem olhar, atravessou a rua e foi atropelado, ninguém viu atravessar, ninguém viu o corpo estirado no chão, foi um fantasma, foi um devaneio, foi algo que eu não sei explicar. Quando é música, eu canto sozinha; estou num videoclipe dirigido e estrelado por mim mesma, e todos que passam por mim são meros figurantes numa rua cheia de câmeras escondidas, e eu apareço na tevê com a pele lisa, com voz de diva, com jeito de rainha de um reino distante, onde todos tentam distrair a mente enquanto desfilam na calçada.
               Eu versifico meu caminho. O semáforo, a espera pelo sinal vermelho, a pressa dos carros enquanto aproveitam o sinal verde, o morador de rua pedindo dinheiro e eu com pena, mas sem saber se ajudo ou não, a loja de doces que me enfeitiça e me motiva a gastar moedas perdidas em minha bolsa, os que esperam o ônibus que nunca vem, ou que vem lotado, com um motorista enfezado e com passageiros apressados, o cheiro do salgado da pastelaria onde a música-ambiente é a língua estranha e incompreensível dos funcionários orientais, o sol que toca minha pele e salienta uma digital que se apodera de uma das lentes dos meus óculos, me fazendo procurar mentalmente algum lenço dentro da bolsa capaz de limpar essa digital e melhorar minha visão, mas a minha visão está conturbada demais, o sol atrapalha, a luz atrapalha, a rua atrapalha, a mente atrapalha, eu atrapalho, eu me atrapalho, eu quero sair correndo; versifica isso aí, mocinha.
               Tento desvendar os pensamentos alheios, e creio em agendas descontruídas, em canções mal cantadas, em memórias da noite anterior que pode ter sido de amor ou de ódio. Penso em minha agenda: a rotina de sempre, nada de mais. As minhas canções nunca são mal cantadas; eu sou a diva dos videoclipes, lembra? Minhas memórias. A noite anterior. Dormi. Noites de amor. Que termo cafona. Todas as noites são noites de amor, porque em todas as noites eu amo, amo quem eu quiser, amo mesmo distante, mas gosto de amar de perto e sempre, sempre estou perto de quem amo; não sou nada sem essa rotina. Ódio? Ora, quem não odeia os problemas, as dívidas, as incertezas? Todos. Eu também. Eu odeio odiar. Odeio tudo que não posso alcançar. Mas não gosto de odiar à noite. Dá constipação.
               As lojas de roupas. As vitrines. Todas lindas. Me imagino tocando os manequins e automaticamente vestida com eles, pálida como eles, seca como eles, morta como eles. Sedas, estampas, listras, tricôs, jeans, moletons, polainas... Nua. Por favor. Arranquem minhas roupas. Arranque minha roupa. Me deixe correr nua no meio da rua. Me deixe rimar em plena prosa. Me deixe em paz, seu Verso. Seja meu inverso só por alguns instantes. Eu só quero seguir minha linha, chegar a algum lugar.
               Cheguei. Não há mais o que rimar.  

(Ouça Hometown glory, Adele) 

(Tumblr)

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