quinta-feira, 15 de maio de 2014

Secos e vazios



               Certa vez, alguém escreveu sobre as vidas secas. No caso, elas cruzavam o sertão, e mesmo na imensidão de sua secura, viviam, lutavam, não desistiam. Não porque acreditavam em recompensas ou naquela máxima “everything's gonna be alright”. Mas porque simplesmente viviam automatizados pelo abandono, pela angústia, pela dor de ser o que é sem nem ao menos saber quem é.
            As vidas de hoje não são secas como as que dão nome à brilhante obra modernista de Graciliano Ramos.
            As vidas de hoje estão vazias. De tão cheias.
            É aquele mesmo papo de sempre: as notícias correm através dos nossos olhos, a rotina parece superar a velocidade da luz (sem deixar de carregar o peso da palavra “rotina”), a ansiedade aumenta a produção de unhas postiças e a fabricação de um arco-íris de tarjas envolvendo medicamentos que nos apagam antes mesmos de descobrirmos o nome do dito cujo. Saudades de quando a onda do mar era a musa do poeta, do literato, do fazedor de palavras, ah, aquela onda tão concreta que se fazia abstrata... Só nos restou a onda invisível, a eletromagnética, tão abstrata que se faz concreta. Antes, éramos adotados pelos clichês, pelas rimas pobres, mas que ainda sim preservavam o ato de rimar. Parece que desrespeitamos os nossos pais. Passamos a detestar o clichê. Tudo é cinza, tudo é muro, tudo já foi visto, já foi tocado... Mas parece que nunca nos tocou.
            Não estou dizendo que antigamente a vida era melhor. Não existe vida melhor ou pior; existe vida, e por mais que muitos a tatuem em frases feitas para preencher recados que enaltecem uma falsa autoestima, a vida real é incomparável. Mas ela é flexível, sabe? Cabe em sambas, em poemas, em conversas numa mesa de bar em que copos nunca ficam cheios por muito tempo. A vida cabe em qualquer coisa. Essa é a única coisa que podemos afirmar com toda certeza sobre a dita cuja.
            O que estou dizendo é que nos perdemos. Estamos presos na nossa própria história que parece dar voltas entre surtos, paranoias e atualizações do sistema. Não foi a rede que nos enroscou; nós é que nos jogamos nela, como se a pobre coitada fosse um urso de pelúcia gigante. Nós é que nos despedaçamos para fingir que somos inteiros. Nós é que dispensamos o amor próprio para reclamar da falta de amor em qualquer lugar que nos sirva com uma tela e meia dúzia de anônimos entediados.
            A culpa é nossa. Culpados e vítimas. Absolvidos, condenados. Abandonados dentro da nossa própria histórica cíclica... Como a de Graciliano. Aquelas que dá voltas, que dá e tira esperanças, que nos faz chorar de vez em quando, quem sabe até mesmo perder a compostura enquanto as páginas vão rolando...
            Mas não podemos perder a fé. A minha está depositada na espera do dia em que perceberemos que o importante não é a história que se conta, mas como ela é contada, como se desenvolve, como se dá.
            Há beleza em perceber que, por mais que não pareça, há algo a ser descoberto entre a mudança e a fuga. 

(Ouça O mundo é um moinho do grande Cartola na voz do também grande Cazuza) 

(Tumblr)

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