segunda-feira, 26 de maio de 2014

Invenções



            E se o cara que inventou a cólica for o mesmo que inventou o amor?
            Ok, essa não é a pergunta mais sensata a se fazer. Mas é aquilo... Amor e cólica são capazes de tirar de nós toda a sensatez.
            Aquela sensação estranha... Coisa que altera os sentidos, as entranhas, tudo que a gente é capaz de sentir. A gente se contorce, se revira, se vira nos trinta... E tudo que sentimos é uma vontade enorme de gritar. Gritar o que? Gritar por quê? Gritar pra quem? Ninguém sabe. Simplesmente dói. Dor que tá na rotina, mas que nem por isso é corriqueira. Barulhos irritam. Tudo parece mais frio. Às vezes esquenta, mas então esfria de novo, como se o tempo cortasse os pulsos. E então a gente procura braços que nos aqueçam... Ou almofadas. Bem posicionadas. Macias. Quentinhas. Quietinhas. Bom, a gente tenta.
            Esquisito. Tem os que tentam explicar, mas não conseguem. Admitam: não há explicação. Aceitem. Parem de ver tantas perguntas por aí; o que não se responde respondido está. É a vida. A regra do jogo. O jeito que deve ser. E os filmes da tarde até tentam nos mostrar o lado bom e maquiado da coisa... Mas tem coisas que não devem ser maquiadas; a gente tem que deixar respirar, mesmo que os poros fiquem entorpecidos com a poluição, mesmo que pareça horrível, assustador, deprimente. A gente simplesmente sente. Dói porque tem que doer; pra dar liga, talvez. E então, o frio. A procura por braços que nos tirem desse clima de Sibéria. Almofadas não servem, nem mesmo aquelas em formato de coração com um (nada) original “eu te amo” costurado em branco. Só braços... Olhos também. E por que não sorrisos? Ah, também são de grande valia. O corpo todo. A alma toda.
            Seja quem for esse cara... Ok, teve lá sua importância. Mas nem por isso podemos dizer que foi um sujeito criativo.
            No mais, agradeço apenas ao cara que inventou o Atroveran (que por sinal não me deu um real por essa propaganda deslavada). 

(Ouça O, Coldplay) 



(Pop art comic)

domingo, 25 de maio de 2014

Enjambement 1



Essa não é mais uma poesia
De amor
Essa é apenas mais uma
Que se perderá por entre
As pedras portuguesas
De uma calçada suja e
Se juntará com a represa
Quando a enchente vier.
Os ratos e bichos do esgoto
Saborearão essa fria sopa de letras
Cruas em papel invisível,
Porém pardo
Pálido depois de um beijo
De despedida de quem sabe
Que vai voltar
Mas nunca se sabe
Então quem não sabe
Faz poesia
Não pra dizer que não sabe
Mas pra mostrar que essa
Não é uma poesia de amor
Mas há amor nessa poesia
Assim como num beijo
De despedida. 

(Ouça Your place, Zero 7)


 (Acrylic Ink in Moleskine Sketchbook)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O que realmente somos



               Nós somos mesmo uns bichos esquisitos.
               Quando algo nos agrada, fiamos com tanto medo de perder que surtamos. Se algo nos é desagradável, caímos num abismo de negatividade, de onde parecemos nunca mais sair. Se amamos, focamos no egoísmo de saber se também somos amados; se não amamos, somos uns miseráveis cansados. Se alguém opina sobre algo, condenamos por discordar de nós ou por concordar e soltar um argumento melhor que o nosso; se a pessoa fica na dela, condenamos por ter uma boca e não usar, por parecer fraco ao investir no silêncio.
               Se alguém nos enfrenta, é um crápula; se nos apoia, é um puxa saco. Se é bonito, só pode ser ignorante; se é feio, é um coitado. Se é réu, deve morrer; se é vítima, deve pagar pela burrice. Se é do Ocidente, é impuro, desviado; se é do Oriente, é explosivo (irônica e literalmente). Se sofre, deve enxugar as lágrimas; se é feliz, pode até sorrir, mas que sorria longe de nós. Se voa, pode cortando suas asinhas, você não é nem anjo nem avião; se anda, pode tirando esses sapatos antes de entrar. Se tem vícios, é fraco; se não tem, ops, tem algo errado. É casado? Trai. É solteiro? Não vale nada. Namora? Nos enjoa só de olhar. Noivou? Enrolou. É daqui? Idiota. É de lá? Prepotente.
               Acredito que os pesquisadores de plantão ainda descobriram esse prazer que há em apontar. Pode ser que seja um prazer sexual; a mão que julga masturba o nosso ego. É muito mais do que uma questão de hipocrisia; trata-se de algo mais profundo, com ares oceânicos, enlouquecedores, tenebrosos...
               Não, não somos modernos, críticos, conservadores, literatos, revoltados, conscientes, realistas, engajados, questionadores, humanos, livres, pensadores, sobrecarregados, perdidos, complexos, perfeitos, loucos... Nada disso. A verdade é que somos pentelhos. Pelo pubianos: chatos, nojentos, eca. Mas quem vai lutar contra a anatomia? Quem vai mudar isso?
               A não ser que alguém invente de fazer uma depilação íntima. Na sociedade. 

(Ouça Team, Lorde)


 (Zaloast Chipman)

domingo, 18 de maio de 2014

Amor tem tamanho?



- Gestos grandiosos de amor me fazem acreditar no amor.
               Uma conversa no Twitter com uma amiga me fez pensar nesse assunto. Gestos grandiosos. Amor. Gente que se entrega, não, mais do que se entrega: faz loucuras, não se importa em parecer ridículo para colocar um sorriso no rosto da pessoa amada. Minha amiga dizia que quando via um rapaz fazer algo grande e surpreendente para seu amor, acreditava que um dia o seu chegaria. Eu disse que essa coisa de grandiosidade não faz o meu tipo. A machona.
               Não acredito em grandiosidades. Sei lá, acho que o mundo deixa a gente meio duro... “Sabe de nada, inocente”. Não sei se quem faz loucuras por amor realmente ama, até porque acredito que exista uma linha tênue entre a loucura que a gente sabe que é loucura e faz só pra chamar atenção, ganhar um crédito e marcar a opção “eu fiz a minha parte” e aquela loucura que a gente até pode imaginar que seja uma loucura, mas que a gente faz sem se importar, simplesmente porque deu vontade de fazer – isso também não te isenta de um bom diagnóstico assinado por um psiquiatra de primeira linha.
               Mas quando se trata de loucuras românticas... Todos nós somos criados na base da prova de amor. E cada um tem uma concepção diferente. Existem os que acreditam que provas de amor são essenciais, e nesse quesito entram as cartinhas românticas, as flores e os diamantes – quanto mais suntuoso (e caro), melhor. Existem os que negam a importância de provar o amor, até porque se trata de um sentimento, não de um prato de comida. E existem aqueles que acreditam que o amor, surpreendentemente, encontra-se na rotina.
               Exatamente. É a rotina que faz o amor, não a data especial ou aquele jantar à luz de velas. Amor a gente faz todo dia, meu caro. E faz por qualquer pessoa. Amor a gente faz pela gente, pelo que vê no espelho. Amor não é relativo. Amor é amor, é clichê. E exatamente por isso a gente deve respeitar.
               A gente ama quando cuida, quando se preocupa, quando confia. “Como foi seu dia?”, “como vai aquela dor de cabeça?”, “dá pra gente se ver qualquer dia?”. Sentiu um perfume e se lembrou de quem você gosta. Aliás, nem precisa sentir perfume. A gente não precisa lembrar que gosta. Quando a gente gosta, a lembrança não compete com o esquecimento.
               Ah, sim, atos grandiosos. Pichar um muro. Roubar um anel de diamantes. Pagar uma passagem pra Paris. Dar todas as rosas que encontrar pela cidade. Pedir em casamento de um jeito inesperado. Dar aquele presente que você sabe que nem vendendo um rim conseguirá pagar. Loucuras para dizer que fez, para jogar na cara, ou simplesmente pra matar o tempo enquanto o outro pensa: “caramba, eu o amo, mas não sei se teria cabeça pra fazer tudo isso”.
               Como já disse, o amor está nas pequenas coisas. Sabe por quê? Porque nós somos pequenos. O mundo é uma grande bola formada por pequenas formiguinhas sofredoras: nós. Não nascemos pra carregar pesos que não sabemos calcular; quem se atreve não merece uma salva de palmas, merece no máximo uma crise de autoestima dizendo: “nossa, já te disseram que você é um idiota?”. A gente ama porque o amor é o único peso-pesado que conseguimos suportar, apesar das controvérsias. E a maior loucura que existe a gente já cometeu: amar. Então não precisa inventar. Nem precisa vestir a carapuça de grosseiro e dizer: “ah, eu não preciso ser romântico”. Não, não é assim que as coisas funcionam.
               O amor é grande, pode ser dividido em pequenos potes. A vida é feita de potes. Dá pra guardar tudo, pra armazenar – só não é permitido tampar. Claro, fugas da rotina são sempre bem-vindas... Mas do que adianta fingir que ela não existe? Não conheço alguém em férias permanentes.
               Por isso, ame. Ame sem ter medo da medida. Mas não apele para impressionar, para ganhar estrelinhas no seu relatório direcionado à sua consciência. O amor é grande, tem pra todo mundo, tem pra todos os dias, tem pra vida inteira. Basta começar pela gente. O amor não se mede, mas mede a gente.
               Quer loucura maior do que se entregar? O resto é fichinha. Nem adianta tentar impressionar.
                Respondendo à pergunta do título: tem não, dona. Amor é imensurável. Anota aí.
               Ah, e como eu disse pra minha amiga: é só uma opinião.


(Ouça Rumo ao infinito, Maria Rita) 



 (Agnes Cecile)

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Secos e vazios



               Certa vez, alguém escreveu sobre as vidas secas. No caso, elas cruzavam o sertão, e mesmo na imensidão de sua secura, viviam, lutavam, não desistiam. Não porque acreditavam em recompensas ou naquela máxima “everything's gonna be alright”. Mas porque simplesmente viviam automatizados pelo abandono, pela angústia, pela dor de ser o que é sem nem ao menos saber quem é.
            As vidas de hoje não são secas como as que dão nome à brilhante obra modernista de Graciliano Ramos.
            As vidas de hoje estão vazias. De tão cheias.
            É aquele mesmo papo de sempre: as notícias correm através dos nossos olhos, a rotina parece superar a velocidade da luz (sem deixar de carregar o peso da palavra “rotina”), a ansiedade aumenta a produção de unhas postiças e a fabricação de um arco-íris de tarjas envolvendo medicamentos que nos apagam antes mesmos de descobrirmos o nome do dito cujo. Saudades de quando a onda do mar era a musa do poeta, do literato, do fazedor de palavras, ah, aquela onda tão concreta que se fazia abstrata... Só nos restou a onda invisível, a eletromagnética, tão abstrata que se faz concreta. Antes, éramos adotados pelos clichês, pelas rimas pobres, mas que ainda sim preservavam o ato de rimar. Parece que desrespeitamos os nossos pais. Passamos a detestar o clichê. Tudo é cinza, tudo é muro, tudo já foi visto, já foi tocado... Mas parece que nunca nos tocou.
            Não estou dizendo que antigamente a vida era melhor. Não existe vida melhor ou pior; existe vida, e por mais que muitos a tatuem em frases feitas para preencher recados que enaltecem uma falsa autoestima, a vida real é incomparável. Mas ela é flexível, sabe? Cabe em sambas, em poemas, em conversas numa mesa de bar em que copos nunca ficam cheios por muito tempo. A vida cabe em qualquer coisa. Essa é a única coisa que podemos afirmar com toda certeza sobre a dita cuja.
            O que estou dizendo é que nos perdemos. Estamos presos na nossa própria história que parece dar voltas entre surtos, paranoias e atualizações do sistema. Não foi a rede que nos enroscou; nós é que nos jogamos nela, como se a pobre coitada fosse um urso de pelúcia gigante. Nós é que nos despedaçamos para fingir que somos inteiros. Nós é que dispensamos o amor próprio para reclamar da falta de amor em qualquer lugar que nos sirva com uma tela e meia dúzia de anônimos entediados.
            A culpa é nossa. Culpados e vítimas. Absolvidos, condenados. Abandonados dentro da nossa própria histórica cíclica... Como a de Graciliano. Aquelas que dá voltas, que dá e tira esperanças, que nos faz chorar de vez em quando, quem sabe até mesmo perder a compostura enquanto as páginas vão rolando...
            Mas não podemos perder a fé. A minha está depositada na espera do dia em que perceberemos que o importante não é a história que se conta, mas como ela é contada, como se desenvolve, como se dá.
            Há beleza em perceber que, por mais que não pareça, há algo a ser descoberto entre a mudança e a fuga. 

(Ouça O mundo é um moinho do grande Cartola na voz do também grande Cazuza) 

(Tumblr)