sábado, 1 de março de 2014

Uma (só) palavra



               Dia desses, minha mente estava entediada. Aí resolveu me sacanear, para variar.
               Colocou na ponta da minha língua uma palavra estranha: telepatia. Aquela que vem dos anais da psicologia, da canção da Rita Lee, das cabeças embaralhadas dos estudiosos. Talvez eu esteja dizendo demais essa palavra. Talvez eu queira pular muros, janelas e brechas no tempo. Talvez tenha entrado numa conexão perigosa, e só agora estou percebendo... Armadilhas do inconsciente.
               O desafio da única palavra é insaciável.
               Podemos falar sobre... Batata. O princípio ativo do purê, a estrela dos fast foods, a perdição em forma de legume, comida, comível, ah, eu bem que te dava um trato agora, sua safada. Te descascava todinha, te deixa nua em água, te salgava com algum tempero pitoresco. Te colocava no forno, te cozinhava, te enrolava, te fritava, te assava, te cortava, te amassava, te esmagava, te espremia, te tacava no prato e te comia, ah, eu te comeria de garfo e faca, ou até com a mão, só com a mão, ah, como eu te comeria...
               Óculos. Quatro olhos. Lentes sujas, embaçadas, cheias de dedos. Miopia. Astigmatismo. Estranha maneira de olhar o mundo, tão perfeito, tão artificial. Desperta os olhos para tudo, para todos... E até para nós e nossas manchinhas indesejáveis, nossos medos irrecusáveis, nossas armadilhas em forma de listras. Eu queria ser um par de óculos. Ou até me contentaria em ser um óculo... Se houvesse alguém para me acompanhar nessa quadrilha ocular, claro.
               Céu. Ah, desse eu posso falar até a língua imitar uma tartaruga e se enfiar por debaixo do casco. E tem tanta coisa a ser dita sobre ele que eu me perderia... E me encontraria sobre o sol a pino, desses que parecem amostra grátis do inferno. A obra de arte mais linda da minha parede. A mais valiosa vista. O melhor jeito de valorizar a menina dos olhos. O lembrete que a vida nos dá todo santo dia que sim, ela vale a pena. O eterno carnaval de nuvens e lágrimas que rodopiam sobre luzes hiperbólicas. A cor mais linda de todas as cores. O mar na parte de cima. O horizonte fresco e imbatível, à prova de tenebrosidades. Se o céu cair na minha cabeça, posso até morrer soterrado, mas morrerei feliz.
               O chão. Caímos sobre ele, e cairemos mais vezes. Nosso porto seguro; dele jamais passaremos, esse nosso corpo a ele está preso por toda a eternidade. Passos intrépidos no andar de cima; saltos quebrados podem representar o lado bom da vida. Nossa cama natural. Nosso templo espiritual. Nossa casa.
               Você. Pronome insubstituível, único, quase deprimente. Palavrinha que já virou clichê; não você em si, mas o você, o pronome, o gramatical, o insuportável. Ah, e você no seu você, nessa sua pessoa, ah, esse também virou clichê. O meu favorito, talvez. Companheiro de diálogo, de estrada, de mar adentro. O mar ardendo e a gente aqui, ensaiando conversas que nunca serão encenadas. Você: a palavra que eu nunca vou superar.
               Eu. Tão lírico que chega a ser indecente. Tão nobre que chega a ser gente. Tão real que faz a ficção cometer suicídio. Tão envolvente que chega a não existir. Tão humilde que dói. Eu sou o corpo, a alma, as poucas letras que te seguem – se você vir um E e um U correndo atrás de você, não se assuste. O lugar-comum das anormalidades. O lado bom da negatividade. O lado incerto da compaixão. O suicídio alheio. A ressurreição. A esfera perdida do dragão.
               Eu sou você, e somos um só – seja você quem for, quem tiver que ser.
               Batatinha quando nasce se esparrama pelo chão.

(Ouça Mania de você, Rita Lee)


 (Norman Parkinson)

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