segunda-feira, 31 de março de 2014

Crise capilar



               Ah, ainda bem que você chegou. Preciso mesmo desabafar!
               As coisas estão estranhas. Muito estranhas.
               Outro dia, caiu uma chuva torrencial. Eu havia alisado cada fio, cada milímetro da represa dessa cachoeira que aflora em minha cabeça. A sombrinha não adiantou: apenas uma gota de água e ele se armou, se armou como um gambá soltando seu cheiro e se protegendo do inimigo, como um porco-espinho ativando seu espinho, como uma água-viva incomodando banhistas com seu choque nervoso.
               Aí passou a chuva. Saiu um sol lindo, desses de fazer inveja em qualquer verão que se preze. E o bendito ficou tão esquisito! Parecia ter entrado em curto. Os fios desajustados, todos para cima, meio que revoltados com a mudança repentina de clima. Tentei cremes, géis e até mesmo lenços, mas os fiapos continuavam a aparecer, empenhados em mostrar ao mundo sua falta de sanidade.
               Meu cabelo não sabe o que fazer, e eu não sei o que fazer com ele. Quando vou dormir, está lindo, quieto, arrumado. Quando a manhã chega e preciso sair, é como se fosse um adolescente mal humorado sem a menor disposição para sair da cama. Passeios? Acho que ele é alérgico. Fotos? A busca por um ângulo agradável é insaciável. E quando estou aos beijos? É como se ele tivesse ciúmes dos meus lábios! Ou fica tão excitado que quer ser comido. Literalmente.
               Pensei em arrancá-lo de mim. Como uma imperfeição que a gente tem no corpo e resolve tirar pra se sentir mais leve. Uma espécie de depilação craniana, talvez. Mas ele conhece meu ponto fraco. Sabe como gosto dos cafunés promovidos pelos redemoinhos de dedos alheios em seus fios. Como gosto da sensação de tê-lo em mim, e como aprecio os raros dias de sorte em que ele acorda de bem com a vida. As piscadelas, os elogios, as crises de inveja... Criamos uma relação forte, à prova de piolhos e pontas duplas. Ele sabe como
o amo.
               E quando penso em quem não o tem, não imagino uma vida triste. Nem prática. Imagino apenas alguém que tem mais a se preocupar do que eu. Alguém que não tem tempo para se importar com o que vê no espelho, seja homem ou mulher. Soldados, enfermos ou simples admiradores de uma vida que foge dos padrões. Pessoas que o desejam ou não. Pessoas com histórias mais interessantes do que ele. Quando me dou conta de tudo isso, bom, é aí que percebo que minha crise já deixou de ser apenas capilar há muito tempo.
               Falando nisso, reparou nas minhas mechas californianas? 

(Ouça qualquer coisa, menos Whip my hair, por favor)
(Sol Lewitt)

domingo, 30 de março de 2014

Precisamos falar sobre nós



               Começar esse texto é uma tarefa complicadíssima. E talvez a melhor forma de tentar cumprir essa tarefa é reconhecendo tamanha complicação, como uma desculpa a ser usada quando qualquer comparação feita no decorrer das palavras pareça hipócrita ou contraditória... Bom, se bem que escrever é pisar em ovos, então, que seja.
               Creio que é chegada a hora de falar da fase mais difícil da minha vida – não só da minha vida, feliz ou infelizmente.
               Lembrei-me deste momento tão esperado após tomar um bom banho e colocar as ideias confusas de fim de semana no lugar. Acredito em purificações através do simples ato de se banhar, de lavar o corpo, de refrescar a mente e se esquecer dos problemas (ou ter mais clareza para solucioná-los) durante alguns minutos. Talvez tenha sido um bom banho que tenha me tirado dessa fase... Um só não. Acho que foram vários. É peso demais pra uma ducha só.
               Sempre que leio a palavra “adolescência” em jornais, revistas, livros ou em qualquer lugar, ou até mesmo quando ouço essa palavra sair da boca de alguém em alguma conversa formal ou informal, sinto um ar pejorativo. Como se ser adolescente fosse um crime, um desacato à vida, à moral e aos bons costumes. Adolescentes são chatos, porque parecem bichos escrotos que saíram dos esgotos, como diz a música dos Titãs. Adolescentes são rebeldes sem causa, são crianças que se acham adultos, são adultos que se acham crianças. Deviam dormir e acordar com vinte anos, quando as responsabilidades são irrecusáveis e os pais nada mais são do que aqueles simpáticos senhores que vez ou outra nos lembramos de telefonar e dizer que a vida vai bem, e que aquele almoço de domingo fica pra um domingo que ninguém sabe quando vai ser, mas que chama educadamente de “próximo”. Adolescentes são impulsivos, corrosivos, repetitivos e insuportáveis. Deviam ser proibidos. Deviam ser vendidos ou trocados por bebês bonitinhos que dão menos trabalho. “Ah, você me desculpe, mas meu filho está naquela fase complicada, você entende?”. Não, ninguém entende.
               Nem mesmo os próprios adolescentes.
               Minha mãe sempre se orgulhou do fato de eu não ser sido uma “aborrecente” (eu sempre vou ter um preconceito terrível com esse neologismo de quinta). Nunca saí, fugi de casa, respondi, bebi, fiz malcriação, dei motivo pra preocupação. Às vezes chorava sem motivo, ou queria chorar por algum motivo, mas não tinha lágrima: então chorava por dentro, se é que isso é possível. Não aborreci ninguém. Talvez porque o peso de dar problemas me incomode. Talvez porque eu nunca tenha achado graça em agir como o demônio que todos pintam. Ou simplesmente porque a disciplina de casa funcionou até demais – não sou psicóloga, please.
               Não é porque não fiz que não compreendo quem tenha feito. Sim, compreendo até demais. Se você não faz nada, é bobo (acho que sou até hoje, e não me orgulho, se você quer saber). Se você faz, é o capeta. Se você só quer dormir e que o mundo se exploda... Ah, você é um caso perdido antes mesmo de ser considerado um caso.
               Compreendo quem fez o que eu não fiz. Compreendo porque somos iguais nas nossas dúvidas e confusões e, acredite, isso é bem mais importante do que ter gostos ou atitudes semelhantes. Compreendo porque os mais velhos sabem como é difícil passar por essa fase, mas ao invés de procurarem ajuda ou simplesmente tentarem compreender (claro, sem deixar de orientar e fazer o certo, seja o “certo” o que for), as pessoas têm tanta raiva que preferem julgar – raiva ou medo de terem que passar por isso de novo. A TV mostra apenas o 8 e o 80: anjos e demônios. Pais desesperados que não sabem lidar com algo que se repete. “No meu tempo era diferente”. Ainda tem isso, o maldito problema da geração.
               Não sei e talvez eu nunca saiba passar por isso. Hoje, com quase 19 anos, não sou mais adolescente (e ainda abomino a tal da aborrecência). Tive que superar as lágrimas lá de trás, o que não quer dizer que a vida adulta não tenha as suas. Ainda vejo gerações serem questionadas ao invés de superadas. Ainda sinto que minha mãe se orgulha do tempo em que fui “boazinha”, e agora ela vê a necessidade de entender que ser humana é muito mais importante do que ser algo parecido com um anjo que caiu do céu. É hipocrisia minha dizer que tive uma adolescência feliz, e seria outra hipocrisia dizer que a tal fase seria feliz se eu fizesse o que não fiz. Descobrir o mundo sempre será a mais excitante das experiências, e começo essa etapa agora, quando sei que muitos já começaram antes de mim. Mas isso não é uma corrida, muito menos um jogo. É uma questão de sobrevivência. E isso não é exagero de gente jovem – ou velha.
               Não sou perfeita. Me escondi demais porque sim, eu tive medo do que iam pensar de mim. Ligar aquele velho botão é difícil, é como se tivéssemos medo de levar choque. Mas hoje, mesmo sem apertar o botão, é como se eu estivesse descalça e houvesse eletricidade nas paredes em que me encosto para me sustentar. Talvez eu nunca aprenda tudo que deve ser aprendido, mas isso é só um ponto de vista: aprendemos aquilo que nos cabe, que nos é imposto pela vida. De vez em quando, me escondo, porque parece que esse medo de ser quem eu sou não vai embora nunca – tô começando a achar que nunca saberei quem sou, nem mesmo quando chegar aos trinta e imaginar minha vida como num comercial de absorventes.
               Mas quem se importa? Pelo mesmo eu sobrevivi. E todos nós sobrevivemos. Mesmo que danificados, desiludidos ou cheios de esperança. O adulto que somos é o protótipo criado pelo adolescente que fomos. E a vida fica mais fácil (ou menos difícil) quando descobrimos que seremos jovens pra sempre, mesmo quando as gerações brigarem ou quando nossos filhos chegarem. E aí, quando eles passarem pelo que nós passamos, cabe a nós agir como velhos que julgam ou como jovens dispostos a descobrir o mundo; o livre arbítrio. Porque é isso que vamos fazer pra sempre: descobrir o mundo.
               Bom, acho que preciso tomar outro banho. 

(Ouçam The boy's gone, Jason Mraz)


(Tumblr)
 

sexta-feira, 28 de março de 2014

Eu, areia



Mares do norte:
Pela raiz, me cortem

Mares do sul
Levem consigo o verde
E me tragam o azul

Mares das sombras:
Ninem minhas conchas

Mares da esquina
Lavem as calçadas
E abracem suas meninas

Mares tenebrosos:
Ensurdeçam as horas
E divirtam meus olhos

Mares de outrora:
Suspendam os adjetivos
E me encontrem quando o sol baixar...

Às cinco horas. 


 (Ouça Qualquer coisa, Caetano Veloso)


 (Alfred Stevens, Moonlit Seascape, 1892)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Matar é esquecer



            Durante todo o punhado de vida que nos é dado, uma certeza nos vem como brinde: morrer não tem volta. Espíritos, fantasmas, zumbis, demônios, criaturas de origem indefinida... A fantasia que incide nos livros não tem cacife para mudar a dura realidade.
            Há solução para tudo, menos para a morte. Os cemitérios pensam que ganham rios de dinheiro com esta afirmação. Pobres coitados, não sabem que a imortalidade é uma opção.
            Sim, morrer é deixar a vida, mas não é ser enterrado a sete palmos da terra ou desmanchar-se até voltar ao pó: morrer é ser esquecido. Matar é esquecer. Não adianta; todo ser humano é um cruel matador e, porque não dizer, um monstro. Matamos namorados, amigos, professores, colegas de classe, parentes, vizinhos, estranhos que vemos na rua ou na tevê. Matamos canções, histórias, lembranças, abraços, beijos, carinhos, verdades, sentidos, sentimentos. Matamos o que não mais abastece nosso admirável mundo de intimidades fúteis. Matamos sem querer; a ignorância se frustra ao tentar nos fazer inocentes.
            Matamos porque achamos que só assim teremos uma vida melhor. Aquele amor do passado que nos fez perder dias e noites para as lágrimas? Esqueça-o! Mate-o! Tire-o de sua mente, e assim, degole-o! Talvez sofra com fatos tão frescos, mas não se importe, a dor passa e a vida caminhará como se nada tivesse acontecido. Despreze o perdão, o amor, o afeto, o respeito. Siga sua vida em linha reta, sem perder tempo com placas ou engarrafamentos que levem a altas reflexões, e tudo será como antes.
            Que grande mentira.
            O que é a vida sem a dor da lembrança? O que é a vida sem traumas que nos tiram o sono e nos fazem amadurecer? O que é a vida sem a decepção com o companheiro, com o pai, o chefe? O que é a vida sem o perdão?
            O que é a vida sem uma justa luta por nossa imortalidade?
            A eternidade existe, e é costurada pelo tempo de vida que alguém, por obra divina ou do acaso, acredite no que quiser, nos concede. Assim como podemos ser bons matadores, estamos sujeitos à morte.
            Matar é esquecer. Eternizar é se fazer vivo mesmo depois do coração parar de bater. 


(Ouça Pra declarar minha saudade, Maria Rita)

 (Tumblr)

domingo, 23 de março de 2014

Para ser perfeito



               Não importa: você tem a obrigação de ser o melhor.
               Em ambientes formais, respeite as regras gramaticais e de etiqueta. Os acentos devem ser bem colocados. Coloque-se bem nos assentos. Seja agradável, iluminado, o tipo de criatura que provoca aquela admiração que se confunde facilmente com inveja. Amistoso, sensível, preocupado com os conflitos que lhe são apresentados, dono de um humor que faz qualquer comediante cortar os pulsos. Em ambientes informais, seja incrível. Tenha assunto. Mas cuidado: não seja chato. Administre suas conversas como se elas fossem ações valiosíssimas na bolsa de valores. Seja charmoso, irresistível; se for mulher, vale uma cruzada de pernas ou um simples olhar hipnotizante... Mas tenha cuidado para não extrapolar os limites da sedução – nem se torne uma feminista revolucionária. Tenha dentro de si um relógio que o desperte na hora de falar e na hora de se calar. Controle o tempo, se preciso for.
               Ao ser pai (ou mãe), seja maravilhoso. Os amiguinhos do seu filho devem sentir raiva por não ter seu nome na filiação deles. Seja engraçado, leve, não faça piadas idiotas, não se mate pelos seus filhos (mas também não os ignore), não os force a levar o casaco, não use relógios (mas também não os quebre), não implique com seus modos (mas também não os despreze), seja justo, amigo, bonzinho e por favor, dê uma boa mesada.
Seja o filho perfeito. Aquele que faz a mãe agradecer aos céus por ter parido. Responsável, amigo, companheiro, cumpridor de todas as promessas, ah, obedeça todas as regras. Não reclame de absolutamente nada que seus pais façam. Cobrou horários, notas azuis e camas arrumadas? Não faz mais que obrigação. Brigou com você sem razão? Que se dane a razão. Está com vontade de chorar? Não na frente deles! Eles podem se assustar. Acorrente-se, e se te chamarem de mimado, dê um jeito nessa situação: não se esqueça de que ser perfeito é sua obrigação.
               Ou será que ser o melhor é ser perfeito? Ih, já me perdi.
               Não se perca. Jamais, em hipótese alguma, você deve se perder... Está me entendendo? Não ame feito louco. Isso é coisa de maluco, e você precisa ser normal... Dentro da perfeição, claro. Os perfeitos não amam feito loucos. Aliás, não há estudos que indiquem que os perfeitos amem; pelo contrário. Quando sentir algo por alguém, algo que o deixe aéreo, suscetível, manipulável ou simplesmente idiota, afaste-se já desse alguém, seja ele uma pessoa, um bicho de estimação ou um objeto de valor. A situação se complica quando se trata de pessoas. Não se esqueça: a perfeição não é coletiva. Ou você já viu um grupo de amigos ou um casal de amantes ser canonizado?
               O amor é a pior arma contra a perfeição exatamente por ser um sentimento divino. Foi feito para os livros, para os filmes, para as artes... E nem sabemos se a arte é uma justificativa válida para os seres humanos. O amor, meu caro, é o sentimento mais perigoso que existe. Portanto, ame regularmente. Seus pais, seus amigos, seu cachorro, seu cônjuge. Nada fora do normal. Nada que o faça tremer de vez em quando. Nada que o desespere alguma vez na vida. Nem que o faça errar, ou acertar, ou chorar, ou sorrir, ou chorar tanto que se pode encher um rio, ou sorrir tanto que os olhos se fecham e o corpo se contorce.
               E então, quando seu calendário biológico chegar ao fim e você se perguntar se todas as folhas arrancadas anteriormente valeram a pena, simplesmente exija dos céus seus direitos. Você foi perfeito: fez caridade, jogou lixo no lixo, não teve multas de trânsito, foi um bom menino, deu flores à sua mulher ou um relógio luxuoso ao seu marido, lembrou-se do aniversário de casamento (claro, sem fugir do amor regular), não mentiu, não tirou notas vermelhas, foi o filho preferido, foi o mais incrível de todas as mesas de bar, ah, você brilhará quando repousar no caixão; talvez nem precise de flores.
               E se o céu não te escutar, reze para ter outra vida e lutar pelos direitos dos robôs. Ou simplesmente troque todas essas palavras por uma verdade única e soberana (isso mesmo, carregada nos adjetivos): Não importa: você tem a obrigação de ser você. Mesmo que isso seja um desastre. Pelo menos você entrará no céu...
Ou não. 


(Ouça Protection, Everything But The Girl)

(Tumblr)