Quatrocentas e oitenta e sete vezes.
Estima-se que
escrevi/apaguei/reescrevi o texto dessa página quatrocentas e oitenta e sete
vezes (ops, não era para repetir o número, mas eu gosto disso, eu gosto de
gastar o batom com palavras grandes, com números grandes, com grandezas de
todos os tipos e sentidos). Tentei usar todos os temas que anotei no bloco de
notas que me acompanha todas as horas do dia, mas tudo que consegui foi um vazio,
um inverno, um gosto de metal na boca. Ou de sangue, sei lá, quando você
fura/corta o dedo e resolve estancar aquela coisa vermelhamente mágica que sai
de dentro de você e fica ali chupando aquilo, acreditando estar se purificando,
porque você é louco, porque você não suporta a ideia de ser um vampiro, porque
você não sabe o que está fazendo mas
faz mesmo assim, mesmo sem saber, mesmo que a frase já tenha perdido as estribeiras
e o parágrafo esteja interditado pela Defesa Civil.
Cruel. Li essa palavra agora, ao
abrir o outro site. Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente, é o nome
de uma página que posta textos românticos em sua maioria. Romantismo.
Crueldade. Duas coisas que combinam bastante, você não acha?
Rapidez. A crueldade é isso, a
velocidade, o vento que sambou no seu rosto e te emaranhou os cabelos. Te fez
gastar as vírgulas. Te fez piscar a vista. Te fez chorar baixinho, pra dentro,
fingimento, era uma vez. Passou tão rápido: o mês, a estação, aquele tempo de
pipa e ansiedade, de pavor e exclamação. O que fica é o sabor do gesto e a
falsa sensação de dever cumprido, e você aí, meu amigo, sentado na sua poltrona
velha, agarrado nesse teu saudosismo bossa nova/rock n’roll. O tempo passou.
Cruel. Você escreveu aquele textinho melancólico que foi parar numa pagineta de
Facebook. Você deixou de ouvir aquela canção que te lembra alguém – só pra dar
tempo de desintoxicar. Você se queixou, ah, a maré não tá pra peixe, a vida não
tá pra brincadeira; um “Fora Temer” não é suficiente para botar a raiva pra
fora, você percebe. Você chorou. Ali, quietinho, no seu travesseiro, esperando
a hora passar e virar sexta, sábado, domingo. Você chorou porque tá tudo
errado, desde a posição dos planetas até a sua posição fetal na cama, emaranhado
nas cobertas que te fazem suar como um porco, soar como um porco, logo você, tão limpo, tão cheio de não me
toques, tão raro, tão rígido.
Você seguiu a etiqueta. Foi lá, se
jogou, se entregou, disse o que era, a que veio, o que queria, o que sentia, o
que faria. Você foi o herói. Mas esse mundo, ah, esse mundo cruel... A etiqueta
não é essa que você corta da roupa e continua pinicando, meu caro. A vida diz
que você deve guardar tudo pra si, e a sua aparência é o que importa. Desde o seu
coque samurai até o seu peitoral estufado. Amores não passarão. Dores não
passarão. Lágrimas? Cê tá de brincadeira, né?
Você não deve sentir. Porque você
tem que brincar, jogar, soltar aquele risinho safado e depois jogar pro alto,
enjoar, “não era pra ser”. Não diga bom dia. Não aconselhe a coleguinha a
trocar alguma palavra por outra para que o texto saia mais coerente. Não se dê.
Nunca, em hipótese alguma. Não se apegue. Jamais use essa palavra. Não escreva
cartas. Não sonhe. Não crie expectativas. Não aja. Não “haja”. Não finja. Não
queira.
Não queira.
E então não sinta. Ou chore pra
dentro, mas bem pra dentro mesmo, tão pra dentro mesmo que seja possível entrar
água em seus pulmões. Porque cada passo que você dá deve ser contado,
calculado, milimetricamente imaginado. Cada vírgula que você soltar deve ser
pensada com cautela. Cada fragmento seu deve ser perfeito.
Perfeito.
“Você é perfeita”.
Eu ri de nervoso quando me disseram
isso uma vez. Era um cara que eu gostava. Um cara que respeitava a etiqueta;
aliás, tão etiquetado que virou uma grife, um exemplo, uma moldura perdida na
parede de cimento queimado. Você beija bem, ele dizia, e eu fazia tudo que
devia fazer, eu calculava tudo mesmo sendo péssima em matemática. Eu tentava.
Não por mim, mas pela regra que rege o mundo; aquela que diz que você deve ser
tudo, mas que todos devem ser nada para você. E que não há espaço para empatia,
envolvimento, aperto de mão, olho no olho. “You don’t know me at all”, já dizia
Caê. Nunca que vai me conhecer, monamour.
Nem eu.
Cruel. A vida pareceu ser cruel
comigo quando deixei de ser perfeita para o tal etiquetado. Mas percebi que era
o contrário; eu era imperfeita, e nada poderia ser melhor do que isso. O
direito de errar, de me jogar, de acontecer como eu bem quisesse feat. Como a
vida bem entendesse, ah, que mágico. É uma meta de vida. É libertador essa
coisa de se importar com os outros, desprezando o desprezo, depredando o muro
do desapego, se apegando, sofrendo, agarrando aquela dor como quem dança forró
às quatro da manhã após litros e mais litros de cerveja barata e lágrimas pesadas
demais para o chão batido do bar. Cruel é não se perder. É ficar estagnado no
espelho, “eu sou perfeito”, que se dane o mundo. Cruel, meu amor, é não ser.
E isso eu não sou.
Que crueldade.
Lenta.
Mais cruel ainda.
"Você se aproxima de mim
Com esses modos estranhos e eu digo que sim
Mas teus olhos castanhos
Me metem mais medo que um dia de sol"
Com esses modos estranhos e eu digo que sim
Mas teus olhos castanhos
Me metem mais medo que um dia de sol"
(Ouça Ligia, Tom Jobim)
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