sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Cruel



            Quatrocentas e oitenta e sete vezes.
            Estima-se que escrevi/apaguei/reescrevi o texto dessa página quatrocentas e oitenta e sete vezes (ops, não era para repetir o número, mas eu gosto disso, eu gosto de gastar o batom com palavras grandes, com números grandes, com grandezas de todos os tipos e sentidos). Tentei usar todos os temas que anotei no bloco de notas que me acompanha todas as horas do dia, mas tudo que consegui foi um vazio, um inverno, um gosto de metal na boca. Ou de sangue, sei lá, quando você fura/corta o dedo e resolve estancar aquela coisa vermelhamente mágica que sai de dentro de você e fica ali chupando aquilo, acreditando estar se purificando, porque você é louco, porque você não suporta a ideia de ser um vampiro, porque você não sabe o que está fazendo mas faz mesmo assim, mesmo sem saber, mesmo que a frase já tenha perdido as estribeiras e o parágrafo esteja interditado pela Defesa Civil.
            Cruel. Li essa palavra agora, ao abrir o outro site. Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente, é o nome de uma página que posta textos românticos em sua maioria. Romantismo. Crueldade. Duas coisas que combinam bastante, você não acha?
            Rapidez. A crueldade é isso, a velocidade, o vento que sambou no seu rosto e te emaranhou os cabelos. Te fez gastar as vírgulas. Te fez piscar a vista. Te fez chorar baixinho, pra dentro, fingimento, era uma vez. Passou tão rápido: o mês, a estação, aquele tempo de pipa e ansiedade, de pavor e exclamação. O que fica é o sabor do gesto e a falsa sensação de dever cumprido, e você aí, meu amigo, sentado na sua poltrona velha, agarrado nesse teu saudosismo bossa nova/rock n’roll. O tempo passou. Cruel. Você escreveu aquele textinho melancólico que foi parar numa pagineta de Facebook. Você deixou de ouvir aquela canção que te lembra alguém – só pra dar tempo de desintoxicar. Você se queixou, ah, a maré não tá pra peixe, a vida não tá pra brincadeira; um “Fora Temer” não é suficiente para botar a raiva pra fora, você percebe. Você chorou. Ali, quietinho, no seu travesseiro, esperando a hora passar e virar sexta, sábado, domingo. Você chorou porque tá tudo errado, desde a posição dos planetas até a sua posição fetal na cama, emaranhado nas cobertas que te fazem suar como um porco, soar como um porco, logo você, tão limpo, tão cheio de não me toques, tão raro, tão rígido.
            Você seguiu a etiqueta. Foi lá, se jogou, se entregou, disse o que era, a que veio, o que queria, o que sentia, o que faria. Você foi o herói. Mas esse mundo, ah, esse mundo cruel... A etiqueta não é essa que você corta da roupa e continua pinicando, meu caro. A vida diz que você deve guardar tudo pra si, e a sua aparência é o que importa. Desde o seu coque samurai até o seu peitoral estufado. Amores não passarão. Dores não passarão. Lágrimas? Cê tá de brincadeira, né?
            Você não deve sentir. Porque você tem que brincar, jogar, soltar aquele risinho safado e depois jogar pro alto, enjoar, “não era pra ser”. Não diga bom dia. Não aconselhe a coleguinha a trocar alguma palavra por outra para que o texto saia mais coerente. Não se dê. Nunca, em hipótese alguma. Não se apegue. Jamais use essa palavra. Não escreva cartas. Não sonhe. Não crie expectativas. Não aja. Não “haja”. Não finja. Não queira.
            Não queira.
            E então não sinta. Ou chore pra dentro, mas bem pra dentro mesmo, tão pra dentro mesmo que seja possível entrar água em seus pulmões. Porque cada passo que você dá deve ser contado, calculado, milimetricamente imaginado. Cada vírgula que você soltar deve ser pensada com cautela. Cada fragmento seu deve ser perfeito.
            Perfeito.
            “Você é perfeita”.
            Eu ri de nervoso quando me disseram isso uma vez. Era um cara que eu gostava. Um cara que respeitava a etiqueta; aliás, tão etiquetado que virou uma grife, um exemplo, uma moldura perdida na parede de cimento queimado. Você beija bem, ele dizia, e eu fazia tudo que devia fazer, eu calculava tudo mesmo sendo péssima em matemática. Eu tentava. Não por mim, mas pela regra que rege o mundo; aquela que diz que você deve ser tudo, mas que todos devem ser nada para você. E que não há espaço para empatia, envolvimento, aperto de mão, olho no olho. “You don’t know me at all”, já dizia Caê. Nunca que vai me conhecer, monamour.
            Nem eu.
            Cruel. A vida pareceu ser cruel comigo quando deixei de ser perfeita para o tal etiquetado. Mas percebi que era o contrário; eu era imperfeita, e nada poderia ser melhor do que isso. O direito de errar, de me jogar, de acontecer como eu bem quisesse feat. Como a vida bem entendesse, ah, que mágico. É uma meta de vida. É libertador essa coisa de se importar com os outros, desprezando o desprezo, depredando o muro do desapego, se apegando, sofrendo, agarrando aquela dor como quem dança forró às quatro da manhã após litros e mais litros de cerveja barata e lágrimas pesadas demais para o chão batido do bar. Cruel é não se perder. É ficar estagnado no espelho, “eu sou perfeito”, que se dane o mundo. Cruel, meu amor, é não ser.
            E isso eu não sou.
            Que crueldade.
            Lenta.
            Mais cruel ainda. 

"Você se aproxima de mim
Com esses modos estranhos e eu digo que sim
Mas teus olhos castanhos
Me metem mais medo que um dia de sol"

(Ouça Ligia, Tom Jobim) 


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