Foi na mesma semana em que deputados protocolaram um decreto que impede transsexuais de usarem seus nomes sociais na vida social (que frase estranha, nossa). Até hoje não sei qual o seu nome de batismo. E acho que nunca tive curiosidade, até porque não me interessava nem um pouco.
Ela cortava o cabelo da minha bisavó. Era uma figura icônica, sabe? Magra, alta, cabelos vermelhos, pele morena, os pêlos à luz de Blondor, as sobrancelhas desenhadas a lápis, sempre de shorts e sandálias rasteiras. Nunca conversamos muito. E mesmo que conversássemos, bom, não sei o que uma garota de sete ou oito anos poderia querer saber. Eu só sei que admirava tanto aquela figura que sempre ficava entusiasmada quando ela chegava na casa da minha bisavó.E quando diziam “O Biriça chegou”, eu não entendia. Por que “o” se pra mim era um mulher? E por que Biriça? Por que não Vanessa, Joana, Gabriela? Será que ela escolheu esse nome?
Ela era bem mais do que as roupas femininas que vestia. Pra mim, foi a primeira representação de empoderamento que eu conheci – e olha que no início dos anos dois mil eu não imaginava isso, nem mesmo sabia que essa palavra existia. Biriça me ensinou a ser mulher, assim como minha mãe, minha vó, minha bisa, minhas tias, minha madrinha. E até pouco tempo atrás eu achava que a diferença entre ela e as outras mulheres da minha família era o fato de que ela havia escolhido ser mulher. Mas não, ela não escolheu isso. O que ela escolheu foi dar a cara à tapa, foi se assumir sem medo das piadinhas de mau gosto e do preconceito sempre presente. Ela tinha a postura altiva, dura, quase um ar de superioridade. Eu podia não entender muita coisa naquela época, mas eu sabia o que ela queria dizer: “eu já passei por muito coisa e ainda passo, portanto me respeite. Acima de tudo e qualquer coisa.”
Eu via coragem nos olhos dela. E admirava tanto aquilo que às vezes até me assustava.
Não sei como ela está hoje em dia. Lembro-me de alguém dizendo que estava doente, mas não sei qual era a doença e se ela melhorou. Mas de uma coisa eu sei: sou grata a ela por ter me ensinado tanto com pouquíssimas palavras. Tento imaginar tudo que ela passou – um travesti numa cidade pobre tratado como piada pela maioria não parece ter uma vida fácil. E pensar em tudo isso me ajuda a tentar ser mais forte e lutar cada vez por respeito acima de tudo e qualquer coisa, como Biriça me ensinou com seu jeito de ser.
Biriça não é, nunca foi e nunca será um “traveco” como muitos diziam. Ela sempre será parte da minha formação e de uma luta por todos que deve ser de todos.
Can I get an amen?
(Ouça Mad sounds, Arctic Monkeys)
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