É aqui que Marília começa.
Atirada pelas forças gravitacionais do seu cansaço já cansado da rotina, a tal
mulher de trinta e poucos anos abre os olhos às sete da noite de uma
segunda-feira morna em todos os sentidos possíveis num campo semântico insuportavelmente
infinito. Acordou com o chiado da televisão que tentava lhe dizer que mais um
crime ocorreu em algum lugar no deserto do mundo, e ela pode jurar que ouviu o
repórter metido a galã dizer a palavra deserto, e em dois segundos o crime
perdeu a importância, assim como o chiado da tevê que foi desligada um segundo
antes depois da tal da importância ser dada como pedida na constatação
anterior.
E
então Marília levantou.
Tonta,
tropeçou e bateu o mindinho esquerdo no sofá. Diferentemente do caro leitor,
Marília não tentou se orientar para se lembrar do lado esquerdo e do direito;
apenas xingou um pouco. Dois copos d’água em frente à janela da área de serviço
revigoraram seus sentidos, fazendo com que a falsa loira se lembrasse dos
afazeres prometidos para o decorrer da noite – como pintar o cabelo de preto
para se livrar de uma vez por todas da massacrante vida de falsa loira,
desconsiderando que voltaria à loirice dois meses depois, e então arrumaria
seus livros que andam espelhados pelo quarto, e então telefonaria para a irmã
para pedir alguns conselhos amorosos, e então telefonaria para a namorada para
presenteá-la com o prefixo “ex”, e então voltaria à janela da área de serviço
para trocar a água por uma garrafa de vinho – o que a faria chorar um pouco,
não que ela se importasse com isso. Novamente tonta, enrolaria todos esses “entãos”
num saco de lixo e os descartaria sem dó nem piedade, à espera do próximo
soluço. Pousaria os olhos no relógio e descobriria a madrugada chegando, e
então choraria mais um pouco, mas agora de felicidade; a terça-feira vem com
uma folga no trabalho, um despertador desligado e a certeza de que não há coisa
mais contraditoriamente maravilhosa do que a solidão.
Porém,
nossa heroína (que ela não ouça este tão carinhoso adjetivo) não contava com
novidades. Desiludida, Marília não acreditada em fins (apesar do planejado
término de namoro, que ainda contava com umas noites de recaída) – muito menos
em começos. Era apegada aos meios, às continuações, às segundas partes das
trilogias. Marília era de um mundo em que tudo existe por existir, sem razão de
ser, sem razão de viver, sem razão. Tudo era simplesmente corrido, insone e
insano. Chato. Sem sal.
Mas
enquanto tramava suas tarefas, o telefone tocou. Foi atender sem pressa,
prevendo que nada de importante estava por vir. Devia ser a futura ex pedindo
notícias. A mãe cobrando visitas. A irmã querendo saber se estava tudo bem. O
chefe comentando o último relatório. A amiga de infância chorando o divórcio. A
moça da telefonia questionando o atraso no pagamento da última fatura. O ex
marido pedindo mais uma chance. No máximo, devia ser engano.
Mas
não.
Era
da pizzaria.
Alguém
havia pagado uma pizza de frango com requeijão e um refrigerante para Marília.
Uma alma caridosa que sabia como ela precisava ficar sozinha – pelo menos
naquela noite. Uma alma que entendia Marília. Que lhe fazia perceber que a vida
não faz sentido – e por isso mesmo é maravilhosa. De repente, algo começava.
Algo pleonasticamente novo e desconhecido. Sem marcas, precedentes ou
expectativas. Algo nunca antes visto na história de Marília.
Recebeu
a entrega. E veio o desafio: quem teria feito a entrega, o motivo, essas
coisas. Num cartão que veio junto com a encomenda, um conselho: seja feliz. E
quem teria feito a encomenda, meus deuses? Poderia investigar na própria
pizzaria; do jeito que era curiosa, gastaria o dinheiro que iria usar para
pagar a bendita fatura da telefonia para subornar o gerente, caso fosse
necessário. Será que foi a irmã? A namorada? A mãe? O chefe? O ex marido? A
amiga de infância? A moça da telefonia? E por que teria feito isso? Seria amor?
Vingança? Stalk?
Mas
ela resolveu entrar na brincadeira. Ao invés de se deixar levar por questionamentos
tolos, decidiu comer a pizza. Inteira. Nenhuma sobra. Nenhuma cebola encostada na
caixa para contar história.
Farta
e mais uma vez jogada no sofá, abriu um sorriso como há tempos não abria.
Tentava seguir o conselho do seu admirador secreto. E a barriga pesava tanto
que Marília não tinha forças para cultivar ilusões, e não pensava em
absolutamente nada para se sentir fisicamente mais leve – só fisicamente mesmo,
porque o resto estava ok.
De
repente, Marília havia se jogado num começo. Não sentia medo. Nem fome.
Só
alegria.
E
gases.
(Ouça Save room, John Legend)
(Sylok)
Interessante. Mas...
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