Se
a hora for realmente necessária, digo que não passo das cinco. O sol ainda
brilha, despedindo-se sem grandes alegorias. Se você quer saber como é o
ambiente, sem problemas: uma sala de estar com janelas escancaradas, uma música
que deve abrigar o primeiro ou o segundo lugar nas paradas de sucesso (por
enquanto), um copo d’água parado há horas no criado mudo (o móvel de nome mais
intrigante da história da decoração de interiores), um computador travado na
mesa improvisada, o cachorro zanzando pela sala... A perfeita sintonia entre o tudo
e o nada, a harmonia e o caos. Todos os detalhes seguem uma órbita impensável,
porém responsável pela unicidade do momento. O corpo dela está lá, estendido no
sofá, como uma manta encardida pelo tempo – para não dizer “pela poeira”. Sim,
seus pensamentos perdem-se entre pretéritos lambuzados pelo espírito da rinite
alérgica. A respiração quase inaudível é mais rítmica do que esse pop vazio que
sai das caixas de som. Os olhos dela estão no céu, provavelmente esperando o
próximo avião, ou quem sabe fitando o urubu que descansa no para-raios, ou
talvez sentados na única nuvem que enfeita esse bando de azul... A boca desenha
umas palavras esquisitas no ar, no automático, sem pedir autorização ao
cérebro. De repente, os pés dela começam a formigar, fazendo seus olhos se
fecharem num movimento brusco, fazendo com que o próximo avião passe sem sua
fiel espectadora. Após horas deitada, resolve se levantar do nada, como num
pulo – talvez seja uma nova versão daquilo que chamam de respirar fundo, “breathe in/breathe out”. Ah, mal sabia
ela que havia algo a acontecer na próxima linha. Aquela tontura no melhor
estilo sadomasoquista balançaria suas ideias, tiraria o pó dos seus
pensamentos, bagunçaria seus sentimentos tão obsessivamente organizados. Nada
mais seria como antes. O céu sentiu inveja: “estou aqui há horas tentando clarear
a mente dessa garota para isso, para tudo se resolver da forma mais mal educada
possível”. Os pés tocaram o chão gelado do apartamento, e foi como se todos os
grãos que formam seu corpo se assustassem, e então se renovassem num processo
radical e incompreensível. De repente, ela era outra. Como um camaleão.
Cientistas tentarão explicar
tamanha mudança com raios laser e gráficos ilegíveis. Românticos inserirão versos
infames num falso relato clichê. Leigos ficarão sem palavras – e procurarão
outro objeto de interesse. Céticos arregalarão seus olhos e cortarão seus
pulsos com espátulas de geleia.
E ela? Bom, ela é outra. Ela é
ele. Ela é tudo.
Ela sou eu.
(Ouça Criança, Marina Lima)
(Sandhi Schimmel)
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