domingo, 2 de agosto de 2015

Camaleoa

               Se a hora for realmente necessária, digo que não passo das cinco. O sol ainda brilha, despedindo-se sem grandes alegorias. Se você quer saber como é o ambiente, sem problemas: uma sala de estar com janelas escancaradas, uma música que deve abrigar o primeiro ou o segundo lugar nas paradas de sucesso (por enquanto), um copo d’água parado há horas no criado mudo (o móvel de nome mais intrigante da história da decoração de interiores), um computador travado na mesa improvisada, o cachorro zanzando pela sala... A perfeita sintonia entre o tudo e o nada, a harmonia e o caos. Todos os detalhes seguem uma órbita impensável, porém responsável pela unicidade do momento. O corpo dela está lá, estendido no sofá, como uma manta encardida pelo tempo – para não dizer “pela poeira”. Sim, seus pensamentos perdem-se entre pretéritos lambuzados pelo espírito da rinite alérgica. A respiração quase inaudível é mais rítmica do que esse pop vazio que sai das caixas de som. Os olhos dela estão no céu, provavelmente esperando o próximo avião, ou quem sabe fitando o urubu que descansa no para-raios, ou talvez sentados na única nuvem que enfeita esse bando de azul... A boca desenha umas palavras esquisitas no ar, no automático, sem pedir autorização ao cérebro. De repente, os pés dela começam a formigar, fazendo seus olhos se fecharem num movimento brusco, fazendo com que o próximo avião passe sem sua fiel espectadora. Após horas deitada, resolve se levantar do nada, como num pulo – talvez seja uma nova versão daquilo que chamam de respirar fundo, “breathe in/breathe out”. Ah, mal sabia ela que havia algo a acontecer na próxima linha. Aquela tontura no melhor estilo sadomasoquista balançaria suas ideias, tiraria o pó dos seus pensamentos, bagunçaria seus sentimentos tão obsessivamente organizados. Nada mais seria como antes. O céu sentiu inveja: “estou aqui há horas tentando clarear a mente dessa garota para isso, para tudo se resolver da forma mais mal educada possível”. Os pés tocaram o chão gelado do apartamento, e foi como se todos os grãos que formam seu corpo se assustassem, e então se renovassem num processo radical e incompreensível. De repente, ela era outra. Como um camaleão.
Cientistas tentarão explicar tamanha mudança com raios laser e gráficos ilegíveis. Românticos inserirão versos infames num falso relato clichê. Leigos ficarão sem palavras – e procurarão outro objeto de interesse. Céticos arregalarão seus olhos e cortarão seus pulsos com espátulas de geleia.
E ela? Bom, ela é outra. Ela é ele. Ela é tudo.
Ela sou eu. 

(Ouça Criança, Marina Lima) 

(Sandhi Schimmel)

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