domingo, 30 de agosto de 2015

Do nada



            Apaguei a luz.
Abri a janela.
Num banco perto dela, apoiei o computador.
Respiro fundo, ajeito os óculos e vou.  
Voo.
A bola da vez é branca e ilumina tudo, todos e mais um pouco.
Dizem que essa bola rege meu signo, meu sono, meu sonho, seja lá o que for.
Faltando palavras, caminho com ela me encarando, me iluminando assim, bem devagarinho, me fazendo esquecer aquela regra do verbo, pronome, ah, que se dane a gramática.
Que se danem todas as regras desse mundo.
Que se dane o mundo, agora, nesse instante, nesse exato instante em que a única coisa que importa é a tal da bola.
Daqui da janela, viro goleira. O computador é a minha trave. Os aviões são os adversários.
Não entendo nada de futebol.
A bola parada no meio do campo é tão bonita que ninguém se mexe, e mesmo assim o mundo rodopia.
A luz é branca. Amarela. Vermelha.
O céu preto, tão bonito, tão intenso, tão cansado dessas canções que o descrevem com tanta babaquice, tanta caretice, lá se vai um bocejo.
Das outras janelas, tevês no máximo, imagens de um domingo nada fantástico, tudo como devia ser.
Que se danem todas as regras desse mundo.
Que se danem os adjuntos, os advérbios, os salmos e os provérbios.
Que se danem os trechos literários cravados na ponta da língua e dispersos nas esquinas do cérebro.
Que se dane o errado e o certo.
Que se dane essa mania de ser perfeito, esse TOC, essa falta de toque, esse tal de respeito.
Que se danem Norma e Padrão, o casal da geração.
Que se dane tudo que se acha importante, que se acha interessante, tudo que se acha.
Que apenas reste o que se perde.
E que essa bola não saia de campo nem tão cedo.
Que ao menos ela espere amanhecer.

(Ouça Fall in, Esperanza Spalding)



(moon over cypress)

domingo, 16 de agosto de 2015

Canhotos e destros

Mais um dia de, cof cof, protestos nas ruas do país. Não que isso tenha inspirado essa conversa – pelo contrário, ela já estava matutada na minha cabeça há um bom tempo. Eu resolvi dar uma esquecida na ideia simplesmente porque falar de política no Brasil é tomar partido, dar o sangue, plantar bananeira, enfim, agir como alguém que precisa dar uma passada bem demorada no divã mais próximo pra ver se resolve uns extremismos internos.
– ah, mas se você fala de divã, ou você fala pra galera de direita ou pra galera da tal esquerda caviar.
Bom, a minha coordenação motora é péssima – tão péssima que eu tenho que escrever no ar com a mão esquerda pra saber quando eu vou pra esquerda ou pra direita. Quando me perguntam de que lado político eu sou, eu costumo dizer que sou canhota. Uma brincadeirinha ridícula que já perdeu a graça há anos, por sinal – acho que já posso me candidatar para a vaga de tio do pavê.
Acontece que eu sempre, sempre gostei de política. E comecei a gostar mais ainda quando li “A revolução dos bichos”, George Orwell, umas das narrativas mais apaixonantes da prateleira do meu coração (aff). “Todos os bichos são iguais, mas alguns bichos são mais iguais que os outros”. Essa frase me pegou e me pega até hoje.
Fui procurar no amigo Google e descobri que a origem do termo “esquerda” e “direita” dentro da política vem lá da Revolução Francesa, debaixo dos caracóis dos seus cabelos e dos vestidos de Maria Antonieta. Se você é de esquerda, é porque você luta pelos trabalhadores, ou seja: você é pobre. Se você é de direita... Migo, tem como cê me emprestar uma grana? É basicamente isso.
O problema é que essa coisa de querer diferenciar a galerinha pobre e a galerinha rica é muito, muito patético. É como na Granja do Solar no livro de Orwell: os supostos mais inteligentes dominam os “coitadinhos”. Só que é um livro, minha gente. Ficção. E quando eu vejo que ainda existe gente (e muita) que insiste em criar dois países num só seguindo princípios furados e que não funcionam nem no papel, ah, dá um medinho, mesmo sabendo que é assim em boa parte do mundo. A partir do momento que a briga do azul contra o vermelho dita o suposto progresso (ou não) do país, amigos, é chegada a hora de dar as mãos e rezar. Mesmo que isso não aconteça só no Brasil.
Você vai dizer que sempre foi assim – sim, realmente. A história política do nosso país é, no mínimo, bem agitada. Tem sempre alguém gritando “briga, briga” como se estivesse num pátio de escola. Mas tudo se torna absurdamente incômodo quando a população devidamente separada e desarmônica resolve ir às ruas para lutar por coisas que não fazem o menor sentido – como o fim da democracia, por exemplo. Se você achar que estou sendo radical e me disser que vivemos uma ditadura velada, então somos nós mesmos que alimentamos essa ditadura parida pela mídia que a gente tanto idolatra. Eu me coloco no meio porque eu matei a dona Florinda que havia em mim e que mandava eu não me misturar com essa gentalha. No fim das contas, somos todos gentalha. Ou como dizem os milhões de representantes do Aliança Francesa que habitam este país: je suis gentalha. Acho que agora a estampa na camisa fica mais bonitinha.
Se nós nos desgrudássemos um pouco das bandeiras e dos alarmes escabrosos da tevê e da web, talvez as coisas ficassem mais claras. Conseguiríamos enxergar números reais, dados, os verdadeiros problemas que assolam o país, as crises e como superá-las sem ofensas ou dramas. Quando você percebe que todos fazemos parte do mesmo país – desde que seja uma percepção completamente desligada de classes, raças e outros pedras que nós mesmos inserimos no caminho – bom, crise nenhuma é capaz de nos derrubar. NOS. Percebam o pronome.
Seria muito hipócrita da minha parte dizer que as coisas estão boas. Mas também seria muita hipocrisia culpar uma única pessoa. No fim das contas, todos nós temos culpa. Todos. TODOS. Quem votou, quem não votou... Quem é pobre, rico, canhoto, destro... Somos culpados por fechar os olhos e abrirmos só quando nos convém. Por julgar, ofender, separar. E se eu disser que o país inteiro está por trás desse caos?
   Continuo canhota, sem partido e hasteando uma bandeira branca com os dizeres “pela saudade que me invade, eu peço paz”. Minha coordenação motora continua péssima. E sinceramente? No atual momento, eu gosto disso.
   Ah, pra quem se interessou pelo final do livro. Ele acaba assim: “As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco.”
- Je suis farinha do mesmo saco.


(Ouça Vale tudo, Tim Maia)

(Dan Abramson)



sábado, 8 de agosto de 2015

Tato

Eu vejo um M riscado na palma da mão. Um M de qualquer coisa: de mãe, de medo, de merda. E conforme eu toco cada linha que forma essa coisa estranha abaixo dos anéis que parecem segurar meus dedos, eu sinto algo diferente - uma nova visão do meu próprio tato, se isso não for muita audácia em forma de sinestesia (ou personificação). É tão estranho... Não é como quando eu insiro meu indicador no botão central do telefone pra desbloquear a tela. Nem mesmo quando bato a porta, a panela, a tecla do computador... Quando eu toco a caneta e me esqueço por um segundo da força necessária para produzir uma letra legível. Ou quando eu toco o vidro da taça de vinho, do porta-retrato empoeirado no canto da estante, quando eu viro as páginas do livro, quando eu passo a mão nos cabelos para tirá-los da frente dos olhos... Não, é um toque diferente, mais do que uma cócega, do que um sopro, do que um gesto. É como se, durante aquele mísero instante, eu conseguisse sentir tudo o que me faz, e a verdade é que nada disso foi feito pra ser sentido assim, no toque dos dedos, numa espécie de desenho imaginário, nesse caminho de contornos... Eu, que até pouco tempo era de tijolo e cimento, me flagro feito de sombras, de sons, de luzes, flashes, tropeços no salão. E todo o meu corpo, tão concreto e destemido, não passa de uma folha de papel que volta e meia eu rabisco, dobro, amasso, faço bolinha e jogo no ar. De repente, não passo de uma gotícula de um líquido invisível, e de repente eu sou invisível, e tudo que me sustenta é o M que carimba as minhas mãos. Como se essas palmas reunidas formasse o meu céu sem lua em pleno verão. Como se a leveza do ser se tornasse sustentável por apenas um pentelhésimo de segundo, e o som mais alto do mundo fosse o silêncio – aquele que ecoa nas conversas perdidas, na ausência de palavras, no segundo que antecede o gozo, que faz a última gota pensar no copo todo antes de se espatifar no chão.
De repente, meus dedos se descobrem, e então se cruzam como namorados. Brincam com seus ossos, se estalam e se instalam num abraço extremamente dramático. O alfabeto das ideias loucas e dos contornos impensáveis se forma. Todas as coisas ao redor viram peças perdidas que não fazem falta no jogo.
É tudo uma questão de toque. De tato. De entrega. 

(Ouça Aim high - John Legend)

(Malika Favre)

domingo, 2 de agosto de 2015

Camaleoa

               Se a hora for realmente necessária, digo que não passo das cinco. O sol ainda brilha, despedindo-se sem grandes alegorias. Se você quer saber como é o ambiente, sem problemas: uma sala de estar com janelas escancaradas, uma música que deve abrigar o primeiro ou o segundo lugar nas paradas de sucesso (por enquanto), um copo d’água parado há horas no criado mudo (o móvel de nome mais intrigante da história da decoração de interiores), um computador travado na mesa improvisada, o cachorro zanzando pela sala... A perfeita sintonia entre o tudo e o nada, a harmonia e o caos. Todos os detalhes seguem uma órbita impensável, porém responsável pela unicidade do momento. O corpo dela está lá, estendido no sofá, como uma manta encardida pelo tempo – para não dizer “pela poeira”. Sim, seus pensamentos perdem-se entre pretéritos lambuzados pelo espírito da rinite alérgica. A respiração quase inaudível é mais rítmica do que esse pop vazio que sai das caixas de som. Os olhos dela estão no céu, provavelmente esperando o próximo avião, ou quem sabe fitando o urubu que descansa no para-raios, ou talvez sentados na única nuvem que enfeita esse bando de azul... A boca desenha umas palavras esquisitas no ar, no automático, sem pedir autorização ao cérebro. De repente, os pés dela começam a formigar, fazendo seus olhos se fecharem num movimento brusco, fazendo com que o próximo avião passe sem sua fiel espectadora. Após horas deitada, resolve se levantar do nada, como num pulo – talvez seja uma nova versão daquilo que chamam de respirar fundo, “breathe in/breathe out”. Ah, mal sabia ela que havia algo a acontecer na próxima linha. Aquela tontura no melhor estilo sadomasoquista balançaria suas ideias, tiraria o pó dos seus pensamentos, bagunçaria seus sentimentos tão obsessivamente organizados. Nada mais seria como antes. O céu sentiu inveja: “estou aqui há horas tentando clarear a mente dessa garota para isso, para tudo se resolver da forma mais mal educada possível”. Os pés tocaram o chão gelado do apartamento, e foi como se todos os grãos que formam seu corpo se assustassem, e então se renovassem num processo radical e incompreensível. De repente, ela era outra. Como um camaleão.
Cientistas tentarão explicar tamanha mudança com raios laser e gráficos ilegíveis. Românticos inserirão versos infames num falso relato clichê. Leigos ficarão sem palavras – e procurarão outro objeto de interesse. Céticos arregalarão seus olhos e cortarão seus pulsos com espátulas de geleia.
E ela? Bom, ela é outra. Ela é ele. Ela é tudo.
Ela sou eu. 

(Ouça Criança, Marina Lima) 

(Sandhi Schimmel)