Quando eu saio por aí, imagino minha
vida narrada por alguém, como naquele filme “Mais estranho que a ficção” em
que um cara como qualquer outro começa a ouvir, da noite pro dia, uma voz feminina narrando seus pensamentos, sentimentos e
ideias com uma precisão assustadora. A rotina pode ser do jeito de for, não
importa; ao caminhar pela rua ou se perder de vista no tédio dos
engarrafamentos, é como se a tal da rotina virasse uma crônica de revista, ou
desses livros que só os intelectuais compram porque têm dinheiro e tempo para
ler, não é mesmo? “Ela aperta o botão e chama o elevador que, apressado, chega
fazendo o estardalhaço de sempre. Ela abre a porta, respira fundo, solicita o
térreo e vê a porta se fechar, a caixa começa a descer, tudo começa a deslizar,
e tudo que se vê é seu rosto aflito refletido no espelho rezando para que a
porta se abra o mais rápido e que o térreo chegue, livrando-a da caixa, da
incerteza da prisão, dos quarenta e cinco segundos de isolamento total”.
Para
que as coisas ficam mais bonitas quando são ditas em terceira pessoa. Nem
precisam ser ditas: uma foto, por exemplo. Não, a questão é maior do que postar
aquela foto bacana nas redes sociais e esperar curtidas, comentários,
compartilhamentos e respingos de inveja de todas as partes do mundo. O legal é
se imaginar famoso, conhecido, flagrado no dia-a-dia tomando um sorvete,
ajeitando o cabelo, falando ao pé do ouvido umas coisas sacanas para aquele
cara ou aquela garota, enfim, ser capa de uma revista imaginária, ser manchete
da própria vida. A vida cronicada não basta; tem que ter registro, tem que ter
sensacionalismo, “ah, eu não falo sobre a minha vida pessoal”. Tão excitante
quanto dizer “moço, siga aquele taxi!” e ziguezaguear no melhor estilo James
Bond sem nada a perder, bom, com exceção da paz mundial.
A
gente não tem graça, mas quem pensa isso somos nós mesmos. Nós vivemos uma
rotina chata, cansativa, deprimente. Às vezes cantamos no chuveiro, às vezes
acordamos no meio da noite com medo do escuro, às vezes nos entregamos a alguém
que não conhecemos direito, mas que nos desperta algo maior do que nós mesmos. O
outro é sempre mais interessante; a grama do vizinho é sempre mais verde. E a
graça de viver é dar outras dimensões à própria vida, imaginar outras
possibilidades, narrar, alterar, modificar, imaginar-se num videoclipe ou no
filme do Woody Allen. Parece que as coisas só têm graça quando saímos de nós
mesmos, e pasmem: não é preciso ingerir álcool ou se afundar em piscinas de
comprimidos para conseguir tal vitória. Basta ser a terceira pessoa, narrar a
própria vida como se fosse outra, ou não, como se fosse a mesma vida de sempre,
mas com qualidades, defeitos, tópicos especiais. E de repente somos observados
por nós mesmos. De repente, tudo que nos resta é uma estranha autoadmiração
gerada justamente no cego desejo de se livrar desse egoísmo diário doentio, em
que só as nossas dores servem, só o nosso tempo passa, só as nossas lágrimas
pesam. Ao se enxergar como se realmente é mas com olhos aparentemente alheios,
a vida ganha um quê de expansão. O outro também ganha a sua devida graça.
A
graça da coisa está no nosso esmalte descascado, no salto que viramos no meio
da rua, na música que faz a gente parar o que está fazendo para dançar até os
pés pedirem para parar. A graça está em ser o que somos, não importando o que
isso significa.
Ser
sua própria estrela. Seu próprio “olho que tudo vê”. Se olhar da raiz dos
cabelos à ponta dos pés. Rir de si mesmo. Chorar das próprias mazelas.
Divertir-se com a comédia da vida real, que não está de brincadeira.
E
então ela chegou ao térreo. Mas decidiu subir de novo; é que deu vontade de
admirar o céu.
(Ouça Illuminati, Madonna)
(Nina Leen)
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