domingo, 31 de agosto de 2014

Ventania


Às vezes, tudo que a gente precisa é de uma boa ventania.
               Quando as coisas estão fáceis demais, lindas demais, certas demais. Quando a vida parece andar perfeitamente, até o tempo parece estar do nosso lado. Quando na nossa cabeça tudo parece estar alinhado, arrumado, organizado... E as nossas gavetas, todas cheirosas e bem configuradas, e os nossos caminhos são livres, sem trânsito ou sinal vermelho, e as nossas histórias, todas elas terminam em risadas eternas, contagiantes, alucinantes. E as nossas vidas, invejadas, glamorosas, perfeitas... Quem criou essa tal de perfeição?
               Quando as coisas estão complicadas, tão complicadas que parecem só piorar. A vida não anda, se arrasta como uma lesma entorpecida – se é que é possível entorpecer uma lesma. Quando os sinais estão vermelho, quando as buzinas fazem orquestra, e as lágrimas parecem suicidas despencando do penhasco dos nossos olhos, e todos os espelhos nos gritam uma imagem feia, tão absurdamente feia que assusta, e quem somos?, para onde vamos?, o que devemos ser? É tudo tão frio, tão sujo, tão nebuloso... Do nada, num piscar de dedos, uma eternidade que mais parece um pesadelo se torna cenário de uma vida que já não se sabe mais como era antes, mas que mesmo assim faz falta. Tudo quebrado, rachado, imperfeito... Quem foi que inventou essa tal imperfeição?
               De repente, as árvores sacolejam como se sambassem, passistas de uma avenida deserta, fantasmagórica, assustadora. A TV sai do ar. As luzes piscam como se anunciassem algo surpreendente. O céu parece bipolar; agora mesmo estava de brigadeiro, agora está mais para filme de terror. As cortinas são bailarinas de um Jazz distorcido, incompreensível, porém mágico.
               Abra a janela. Deixa o vento entrar. Deixa as coisas saírem do lugar, o cabelo se emaranhar, a luz se apagar, os problemas se misturarem e, ao invés de ficarem pesados, adotarem uma leveza de pena e saírem por aí voando, ventando, um aviãozinho de papel, uma coisa qualquer. Deixa tudo girar, tudo saltar, tudo virar poeira, folha de outono, pólen de primavera, tempestade de areia no verão. Deixa ventar. Os papéis, as dúvidas, os sentimentos. Vendavais arrumam ao bagunçar.
               E as vidas que eram perfeitas descobrem seus reais caminhos. E as que eram imperfeitas comemoram sua imperfeição. E o mundo todo venta, voa, cria asas. Nada como um bom vento de setenta quilômetros por hora.
               Hora de escancarar as janelas.

(Ouça Stardust, Michael Bublé)


sábado, 23 de agosto de 2014

Escolhas



               Preciso confessar que, enquanto escrevia esse texto, uns litros de lágrimas caíam. Mas pra mim, melhor que lenço pra secar os olhos só mesmo uma folha de papel e umas boas centenas de palavras.
               Eu resolvi pensar nas escolhas que a gente faz pra vida. Eu, por exemplo, já fiz tantas escolhas... E já desisti de mais da metade delas. Um dia eu quis ser médica porque achava legal usar jaleco. Outro dia quis ser atriz porque eu tinha mania de brincar de estar na TV, de pular, de fazer coisas que só os artistas fazem – não, isso não faz de mim uma artista. Um dia eu quis ser  bailarina, sabe? Mas nossa, como aquelas sapatilhas me incomodaram quando as coloquei. Aí eu decidi fazer Ciências Políticas. E essa foi a minha melhor desistência.
               Hoje eu sou qualquer coisa. Não sou petista, tucana, pmdbista, ecologista, comunista, capitalista, elitista, estilista, narcisista, flamenguista, escafandrista. Não sigo bandeiras – nem a branca porque, vamos combinar, dá muito trabalho pra lavar. Não suporto rótulos; eu sei do que gosto, eu sei de quem gosto, não preciso que me coloquem numa prateleira e digam o que sou ou a que classe pertenço. Porque eu não tenho classe. Eu não gosto de usar salto, só faço escova porque bem sei que meus cabelos armados são altamente violentos e amedrontadores, não peço obséquios nem conto causos, não, às vezes eu falo alto, conto piada sem graça, choro até o rímel fazer um craquelê no meu rosto, borro o batom com beijos, roo as unhas, tenho tiques, falo sozinha, canto como se tivesse uma bela voz (e eu sei que não tenho, não precisa me dizer), ah, essas coisas que a gente confessa pro diário achando que só a gente tem, só a gente faz... Mas é assim com todo mundo. Eu não sou uma garota de revista. Nem sou aquela garotinha esperando o ônibus da escola sozinha. Também não vivo num mundo paralelo onde pessoas são animais e animais são pessoas, assim como no mar os banhistas são os pedestres, e os barcos são como os carros, e as motos são como os jet skis... Sai daqui, Grael, por favor.
               O que me faz única não é o que eu vivi, nem mesmo o que vou viver. Meus sonhos também não me fazem única – apesar dessa afirmação não me fazer desistir deles, pelo contrário. O que me faz ser bem mais do que mais uma na multidão são as minhas escolhas. Eu não escolhi esperar. Nada. Eu não espero por escolha, o que eu espero é só pra respeitar o tempo, não gosto de arranjar problemas com ele. Eu escolhi estar aqui, escrevendo para não chorar. Escolhi as pessoas que quero do meu lado, e eu as amo tanto que as escolheria antes de escolher a mim mesma... Até porque eu nunca fui uma escolha pra mim. Eu nasci assim, eu cresci assim, e com mais um pouco de sorte eu nascia Gabriela cravo e canela, mas não deu, fica pra próxima – pelo menos não nasci Capitu com seus problemas e injustiças. Eu escolhi amar antes de qualquer coisa. Porque quando eu amo, eu tenho orgulho de mim – mas não é um orgulho vaidoso, não, é algo que me deixa feliz por eu ser eu mesma... Amar o próximo faz com que eu me ame. Essa capacidade é divina, e eu não me entreguei a ela porque quero ser santa. O amor me escolheu, e é por isso que às vezes eu derrapo no romantismo ou nas lágrimas insensatas, como essas. E se quem eu amo não me priorizar... Tudo bem, eu entendo, eu respeito, não deixarei de amar. Só peço que, se me amar, me escolha também. Não me importo com esse “também”... Desde que eu esteja na sua lista, está tudo bem.
               Eu escolho fazer o bem. Escolho deixar de lado o preconceito, escolho conhecer o que é novo, me jogar sem esperar meu corpo cair no chão. Quando eu me jogo, eu voo. É um pássaro? É um avião? É mais um super-herói lindo porém cheio de problemas no divã? Não, é só mais uma louca que resolveu se entregar. Vai entender!
               Eu quero mesmo é fazer tudo que não fiz. Essa é outra escolha minha. Fazer tudo diferente. Ter planos diferentes. Não ter planos, deixar tudo acontecer, sem deixar de lutar pra que o cronograma da vida siga o cronograma dos meus sonhos.
               Escolho quem segue comigo, o que segue comigo, o que me faz ser quem sou. Escolho quem não há de seguir ao meu lado; como eu disse a uma grande amiga um dia desses, sou alérgica a quem se recusa crescer. Eu quero mesmo é ser bem grande... Sem deixar de ser pequena, um grão de areia no deserto, mais uma entre tantas outras. Escolho ser humana.
E então, quando não houver mais nenhuma escolha a fazer, quando for a vez da morte me escolher... Que eu morra feliz. Irritada, porque esse negócio de escolher é difícil, mas é bom. Irritada também por não poder mais fazer o que a gente não escolhe: sentir – talvez essa seja a pior parte. Mas desde que eu morra linda, loira e serena como a Bela Adormecida, está tudo ótimo. Se eu morrer feia também, tá tudo bem. Desde que não coloquem espelho no meu caixão, lógico.
               De repente, nasceu o sorriso que faltava em mim. Deve ser porque, do nada, eu escolhi sorrir. 

(Ouça , The end where I begin, The Script)


 (Tumblr)
 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Quando eu morrer



Se eu morrer no dia primeiro
não quero pompa no meu enterro
não quero que gastem dinheiro
só gastem lágrimas, e já está bom demais.

Se eu morrer depois do dia cinco
e o salário tiver caído
então me compre um caixão decente
me trate como gente
gente que morreu,
que a terra há de comer,
mas que aproveitou bem a Terra
antes de morrer.

Se eu morrer no dia dez
desculpas eu peço aos meus cobradores
despeço-me dos meus amores
que nunca se esqueçam de mim
nem de minhas dores.

Seu eu morrer numa sexta 13
a culpa não foi de ninguém
cancelem o Happy Hour
ou juro que volto do além.

Se eu morrer em 24 ou 25
façam-me uma fogueira de são João
lancem minhas cinzas no fogo
finjam que sou cobra
finjam que eu vivo no fogo vivo
e que todos nós morreremos
quando a chama se apagar.

Mas se eu morrer agora
agora mesmo, nesse instante
saiba que sou feliz
por saber que viverei na sua estante.


(Ouça Smile na voz de Michael Bublé)


(Tumblr)

domingo, 10 de agosto de 2014

"Zona zen"



               Peguei o túnel. Fui um pouco longe, confesso – será que os deuses de gramática normativa permitem que eu use a frase “um pouco longe demais”? Ok, tentarei na próxima encarnação. De repente, as coisas mudaram. Um ar diferente entrou no carro, e eu já nem me lembro se estava num carro ou numa bike altamente sustentável, sustentavelmente “alta”, ou se eu estava a pé, eu e meu par de tênis de corrida imaginário, meus óculos de grife, minha viseira, meu iPod com músicas que meus ouvidos não podem imaginar que existem porque Deus, ninguém consegue imaginar a vida do outro lado do túnel. Nenhum dos lados.
               É como abrir a revista de domingo. Num piscar de olhos, compartilho com aquela gente a ojeriza por engarrafamentos e desrespeito às ciclovias, a luta por mais filiais daquela badalada casa de sucos... Até me esqueci que espero sentada pelo fim do uso da palavra “badalada”, assim como as expressões “bicho”, “grilo” e tantas outras caíram em desuso. Estou rodeada por morros, montanhas, nuvens... Até as nuvens são lindas, são de uma lindeza que ninguém do outro lado do túnel consegue enxergar por que... Ah, quem quer saber disso agora?
               As pessoas são diferentes. São todos artistas de um circo secreto, de um picadeiro iluminado pelo pôr-do-sol do Arpoador e tecido pelas tribos que movimentam a praia de Copa, ou do Leblon, ou de Ipanema... De um mirante eu vejo a onda bater nas pedras. Ao meu lado, selfies, met, et, prop, but. Um vento suave dá um toque nos meus cabelos: “ô rapaz, vamos ajudar a moça a ficar bem na foto, ajeita essa juba aí”. Eu olho pra baixo e tudo que eu vejo é a onda bater, como já disse. Quem se joga dali, ora, é morte certa. Quem se joga naquilo ali, ora, é um sopro de vida mais forte que a ventania do Leblon, aquela que um dia foi glacial, disse a Partimpim. A onda quebra forte, espuma branca, faz movimentos quase indecentes de tão perfeitos. Contrastam com o azul manso de um mar tenebroso – eis o único jeito poético de descrever o momento. Naquele mar eu vi artistas se afogarem. Eu vi problemas se afogarem. Eu vi o metro quadrado mais caro se afogar. Eu vi as fofocas, as invasões de privacidade, as coisas indefiníveis que a gente tenta definir, ah, eu vi o ócio se afogar. Eu vi (e não ouvi) todos os barulhos do mundo se afogarem. E eu me afoguei um pouquinho porque sei lá, aquela vista me deixou zonza, talvez tenha sido a zona, a lona, a hora do almoço se aproximando. Do mesmo mirante, eu vi toda a cidade que há pouco havia se quebrado junto com as ondas naquelas pedras. Vi o hotel Marina, dona Marina. Lembrei do nosso amor, claro – não, dona Marina, não é da senhora que eu estou falando. Desculpa aí.
               Eu gosto de ser carioca. Gosto de ser da cidade mais bela, mais fantástica, mais entorpecida e entorpecente do planeta. Mas não gosto dos túneis, zonas, delimitações. Eu queria que tudo fosse num só lugar, sabe? Chame do que quiser: aglomeração, favela, coisa de pobre. Que as belezas de um lado e as loucuras do outro se misturassem... E então o Rio de Janeiro seria uma mulher, quem sabe uma passista, quem sabe a garota de Ipanema (talvez não), quem sabe a musa da laje, a empregada que pega o ônibus de madrugada, a patricinha que se emperequeta mas logo tira o salto pra cair no samba e cair de boca num espetinho de churrasco de gato, a professora que tá cansada de se sentir invisível, a ricaça que vai ao analista pra reclamar do marido, a publicitária com a lateral da cabeça raspada, a mãe de quatro, cinco, mil filhos, a que vende biscoito Globo no sinal, a que já rodou todo o globo... Do jeito que as minhas ideias correm, daqui a pouco boto Nossa Senhora do lugar do Cristo Redentor.
               De repente, voltei a procurar celebridades no calçadão. Acho que essa onda não quebrou em mim como deveria.
               Ou eu já estou quebrada há tempos, ela é que não soube me consertar.
               

(Ouça 505, Arctic Monkeys - ou seja óbvio(a) e ouça Zona zen, Rita Lee)

 (Leif Podhajsky)
 

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

É uma questão de química, entende?



   Químicos não sabem começar textos.
   A química é direta, é exata, não tem frescura. Ou você é um metal ou é um não-metal; ou luta pra ser perfeito ou acha um saco essa coisa de ter que se aceitar como a porcaria de um gás nobre. O problema é se ver num mundo onde todos estão dispersos e encalacrados, e você é só mais um no meio de todos esses.
   Eu quero ser um gás nobre, essa é a verdade. Quero ter os oito elétrons na camada de valência, e caso eu não tenha, tudo bem, desde que eu arranje um bom cidadão que doe ou que me receba, tá ótimo. É, eu não sou um gás nobre. É, eu necessito de uma ligação iônica... Não, não. Eu sonho mesmo é com uma ligação covalente, compartilhamento, parceria, “eu entrego a minha vida nas tuas mãos”. Não é porque eu sou um elemento químico que eu não vou ser romântico.
   Às vezes, tudo que a gente precisa é ingerir um bom antiácido pra ver se neutraliza as coisas dentro da gente, pra transformar tudo em água – um oásis dentro de mim cai muito bem. Eu só queria ser perfeito. Só queria ser endotérmico e exotérmico nas horas certas; sabe, tem momentos em que é preciso absorver, mas tem outros em que liberar é o que há. Eu queria não ter medo dos balanceamentos, das regras de três – aliás, eu adoro a regra de três, adoro a forma como ela me resolve, como coloca os pingos nos is., e é por isso mesmo que eu a temo tanto. Porque no momento é disso que eu preciso: os is com seus devidos pingos.
   Dia desses me senti um ser inútil, um gás estufa, uma aberração. Não sei mais em que família ou período me meti. Eu sou só mais um na tabela periódica, e talvez eu me torne um ácido, um hidróxido ou quem sabe não dê sorte e me torne um sal? Mas quero ser um sal potente, por favor... Quero dar choque. Quero assustar o mundo assim como ele me assusta. Quero descomplicar essa vida, deixar de lado as reações diretas, inversas, equilibradas... Enfim, quero deixar de lado essa mania de fugir do problema pra não perder o equilíbrio. Como se eu fosse um fantoche.
   Talvez eu já seja desequilibrado. O que me resta é aceitar. O que me resta é conviver com isso, é aprender a conviver comigo mesmo antes que tenham que conviver comigo. E quem sabe eu não me conformo com essa imprevisibilidade? Quem sabe eu não veja o lado bom em ser só mais um elemento, só mais um grão de areia no deserto? Tudo é possível.
   Químicos não sabem terminar textos. Bom, se bem que temos a estequiometria a nosso favor. 

(Ouça Céu azul, Charlie Brown Jr.)

(Andy Gilmore)