Domingo.
À esquerda, um casal conversa em espanhol. Imagino um diálogo composto por sugestões indecentes; imagino porque não consigo ouvir nada além de sussurros dispersos, emitidos em sua maioria por uma mulher. No entanto, as supostas indecências não duram muito. Logo mudam de assunto, fazem planos para a semana, bem que o nosso primeiro fim de semana de verão podia ser em Barcelona, você não acha? Depois comentam sobre a separação daquele casal de amigos de longa data, tudo por causa de uma taça de vinho que culminou numa discussão fatal, que horror... Você promete que a gente nunca vai deixar essas coisas idiotas acabarem com o que nós somos? Eu sei que essas tais coisas idiotas são as maiores responsáveis pelos mais importantes fins e começos, até porque nós começamos numa dessas coisas idiotas, você lembra? Eu já nem lembro mais. Mas devíamos lembrar, será que esse é o tipo de coisa idiota que vai nos separar? Acho melhor andarmos um pouco para espairecer.
Atrás de mim, dezenas de pombos dividem um banquete de migalhas de pão recém deixado por duas moças que passavam. Eles me lembram que a única coisa que comi hoje foi aquele sorvete da lojinha da esquina, e nossa, fazia tempo que eu comia um sorvete artesanal tão gostoso. Em todas as outras sorveterias, filas e filas de turistas apressados, vermelhos, barulhentos... E então aquela loja, quase vazia, e o melhor sorvete de stracciatella que já comi nessa cidade. Um sinal de sorte, eu diria. Ou um simples alerta mental: caso você passe mal a ponto de ter que parar no hospital mais próximo, diga ao médico para denunciar a sorveteria Brigitte e o seu sorvete de stracciatella – será que o de manga também estava envenenado?
À direita, uma senhorinha se senta ao meu lado. Dividimos o banco, e de repente eu me sinto num desses filmes em que a protagonista, no auge da solidão, resolve dividir as amarguras da vida com um completo desconhecido enquanto o Central Park salta aos olhos do espectador. Não estamos no Central Park. Estamos no Parque Alameda, bem no meio de Compostela, onde tudo é verde, azul e acidentalmente embranquecido pela luz do sol – isso quando não chove, ora, que domingo raro, não é mesmo? Domingo passado chovia, estava frio, era dia dos namorados e todos se amavam em Paris, em Madri ou num quarto com vista para o Belvís, outro parque daqui que a essa hora deve estar cheio de piqueniques e momentos de topless. Ah, sim, a senhorinha... Não dividi minhas amarguras. Até porque hoje, especialmente hoje, não tenho amarguras. A única coisa que tenho é um sol de quase verão que reflete no meu cabelo artificialmente avermelhado, e que também reflete no cabelo preto da senhorinha que assim como boa parte das outras senhorinhas, parece temer desesperadamente os naturais cabelos brancos. Não sei o que temia quando avermelhei meus fios. Ao contrário da senhorinha, tudo que eu queria era me soltar do tempo, da sensação de eternidade, desse forever young que muito me incomoda. Ruiva, eu imagino, sinto-me sexy, e eu bem que gosto dessa palavra: tão simples e cafona ao mesmo tempo. Como eu, como esses cabelos artificialmente ruivos ou pretos, como a eterna vontade de fugir da sua própria realidade. Lógico que eu não disse essas coisas para a senhorinha. No máximo, sugeri dividirmos melhor o banco, e então ela não teria que se expor a uma overdose de vitamina D. Sugestão negada; que senhorinha mais rebelde.
À frente, o mirante. É ali que eu gosto de apoiar o corpo e ouvir uma das minhas músicas favoritas: um poema do John Cooper Clarke extraordinariamente musicado por uma banda alternativa que tem um vocalista sexy (simples e cafona ao mesmo tempo) com voz de barítono, “I wanna be yours”. Eu quero ser a sua loção hidratante/segurar seu cabelo em plena devoção/mais profundo que o profundo Oceano Pacífico/eu quero ser seu. Uau, ninguém nunca quis ser minha loção hidratante. Mas dali daquele mirante, é como se isso não importasse. A única coisa que importa é a voz de barítono do tal vocalista, numa melodia tão vermelha quanto o meu cabelo. A única coisa que importa é a vista não muito interessante, porém verde o suficiente para que eu me perca em devaneios bizarros demais para essa extensa descrição. Um mirante de colunas gregas, e eu imagino uma encenação de Romeu e Julieta ali. Não é sexy, mas ainda é simples e cafona. I wanna be yours.
Se bem que o dia tá tão bossa nova...
Um senhor se senta ao meu lado. Conversamos na semana passada, quando eu estava do outro lado do parque ouvindo outra canção da tal banda, e ele me disse que havia um ângulo melhor para eu admirar a catedral. Eu disse que gostava dali, daquela árvore me atrapalhando a vista, mas resolvi levantar e acompanhá-lo porque me senti só, e precisava conversar. Ele me disse seu nome, que estava ali todo dia, professor aposentado, como é bom caminhar por Compostela. Estamos perto do mar, você sabe? Canadá, Rússia e algum outro lugar que a minha geografia íntima não seria capaz de imaginar. Ele se despediu, e eu continuei aqui. Ainda sinto o sol bater em fragmentos na minha pele, e gosto disso, gosto desse calor que me faz esquecer os sonhos da noite passada. Eu sonhei com coisas e pessoas que nunca terei – sei que pessoas não são coisas que podemos ter, mas você entendeu o que eu quis dizer. Mas aqui estou eu, fragmentada pelo sol nesse domingo que podia durar a vida toda.
Ou pelo menos o verão todo.
(Ouça Samba de verão, Caetano Veloso)

(@nathalieg)