domingo, 26 de junho de 2016

Enjoados

Se você chegou até aqui, parabéns.
...
Não aguento mais falar sobre mim. A solidão tem dessas coisas: chega uma hora que você não se aguenta mais. E eu estou assim agora. Saio pra espairecer, medito, tiro as energias negativas de mim. Mas quando volto pra casa, lá vem eu de novo. E a gente briga, chora, grita, se descabela e percebe que essa história não tá mais dando certo. A gente pede o divórcio e mata a última fagulha de paixão buscando alguém pra compensar a dor e mudar os ares.
A gente enjoa das pessoas. As pessoas enjoam da gente. Quando é pior? Eu não sei. Não suporto a ideia do insuportável, de ter que dar audiência para as frescuras alheias, ou me colocar no lugar do outro e perceber que a logística humana é bem falha. Não suporto a ideia de não ser suportada, ouvida, esquecida, ignorada, de ter que conviver com um descanso de tela sem notificações específicas. Nós somos estranhos. Digo “nós” porque caí na normalidade da estranheza humana, e isso não me incomoda – em partes. Nós somos estranhos, você também é – seja quem for, o que for. Falamos de nós mesmos porque achamos que o outro sempre vai ter talento para ser o nosso porto seguro. Queremos ouvir o outro, porque queremos ter o talento de ser seu porto seguro – nem sempre querer é poder. Batemos em teclas repetidas, dizemos coisas avulsas, inventamos assuntos. Mas estamos cansados de falar. A palavra não é tão poderosa assim. Nos resta os olhos, os sentidos, o tato. O cheiro. E às vezes, até mesmo quando temos tudo isso, não nos bastamos. Mas sabe como é, precisamos correr riscos.
Eu penso em formas estranhas de esquecer. E logo vem a preguiça - de pensar, de lembrar e novamente de esquecer. Nossa função principal não é o entretenimento, mas sim a plenitude. Uma plenitude tão distinta e transcendental que às vezes parece importante demais para “gastarmos” com um desconhecido qualquer.
Mas é como eu te disse: precisamos correr riscos.
Se nós chegamos até aqui, podemos ir adiante.

(Ouça Dead body, Chet Faker)

(Pablo Picasso)

domingo, 19 de junho de 2016

Quase verão

Domingo.
À esquerda, um casal conversa em espanhol. Imagino um diálogo composto por sugestões indecentes; imagino porque não consigo ouvir nada além de sussurros dispersos, emitidos em sua maioria por uma mulher. No entanto, as supostas indecências não duram muito. Logo mudam de assunto, fazem planos para a semana, bem que o nosso primeiro fim de semana de verão podia ser em Barcelona, você não acha? Depois comentam sobre a separação daquele casal de amigos de longa data, tudo por causa de uma taça de vinho que culminou numa discussão fatal, que horror... Você promete que a gente nunca vai deixar essas coisas idiotas acabarem com o que nós somos? Eu sei que essas tais coisas idiotas são as maiores responsáveis pelos mais importantes fins e começos, até porque nós começamos numa dessas coisas idiotas, você lembra? Eu já nem lembro mais. Mas devíamos lembrar, será que esse é o tipo de coisa idiota que vai nos separar? Acho melhor andarmos um pouco para espairecer.
Atrás de mim, dezenas de pombos dividem um banquete de migalhas de pão recém deixado por duas moças que passavam. Eles me lembram que a única coisa que comi hoje foi aquele sorvete da lojinha da esquina, e nossa, fazia tempo que eu comia um sorvete artesanal tão gostoso. Em todas as outras sorveterias, filas e filas de turistas apressados, vermelhos, barulhentos... E então aquela loja, quase vazia, e o melhor sorvete de stracciatella que já comi nessa cidade. Um sinal de sorte, eu diria. Ou um simples alerta mental: caso você passe mal a ponto de ter que parar no hospital mais próximo, diga ao médico para denunciar a sorveteria Brigitte e o seu sorvete de stracciatella – será que o de manga também estava envenenado?
À direita, uma senhorinha se senta ao meu lado. Dividimos o banco, e de repente eu me sinto num desses filmes em que a protagonista, no auge da solidão, resolve dividir as amarguras da vida com um completo desconhecido enquanto o Central Park salta aos olhos do espectador. Não estamos no Central Park. Estamos no Parque Alameda, bem no meio de Compostela, onde tudo é verde, azul e acidentalmente embranquecido pela luz do sol – isso quando não chove, ora, que domingo raro, não é mesmo? Domingo passado chovia, estava frio, era dia dos namorados e todos se amavam em Paris, em Madri ou num quarto com vista para o Belvís, outro parque daqui que a essa hora deve estar cheio de piqueniques e momentos de topless. Ah, sim, a senhorinha... Não dividi minhas amarguras. Até porque hoje, especialmente hoje, não tenho amarguras. A única coisa que tenho é um sol de quase verão que reflete no meu cabelo artificialmente avermelhado, e que também reflete no cabelo preto da senhorinha que assim como boa parte das outras senhorinhas, parece temer desesperadamente os naturais cabelos brancos. Não sei o que temia quando avermelhei meus fios. Ao contrário da senhorinha, tudo que eu queria era me soltar do tempo, da sensação de eternidade, desse forever young que muito me incomoda. Ruiva, eu imagino, sinto-me sexy, e eu bem que gosto dessa palavra: tão simples e cafona ao mesmo tempo. Como eu, como esses cabelos artificialmente ruivos ou pretos, como a eterna vontade de fugir da sua própria realidade. Lógico que eu não disse essas coisas para a senhorinha. No máximo, sugeri dividirmos melhor o banco, e então ela não teria que se expor a uma overdose de vitamina D. Sugestão negada; que senhorinha mais rebelde.
À frente, o mirante. É ali que eu gosto de apoiar o corpo e ouvir uma das minhas músicas favoritas: um poema do John Cooper Clarke extraordinariamente musicado por uma banda alternativa que tem um vocalista sexy (simples e cafona ao mesmo tempo) com voz de barítono, “I wanna be yours”. Eu quero ser a sua loção hidratante/segurar seu cabelo em plena devoção/mais profundo que o profundo Oceano Pacífico/eu quero ser seu. Uau, ninguém nunca quis ser minha loção hidratante. Mas dali daquele mirante, é como se isso não importasse. A única coisa que importa é a voz de barítono do tal vocalista, numa melodia tão vermelha quanto o meu cabelo. A única coisa que importa é a vista não muito interessante, porém verde o suficiente para que eu me perca em devaneios bizarros demais para essa extensa descrição. Um mirante de colunas gregas, e eu imagino uma encenação de Romeu e Julieta ali. Não é sexy, mas ainda é simples e cafona. I wanna be yours.
Se bem que o dia tá tão bossa nova...
Um senhor se senta ao meu lado. Conversamos na semana passada, quando eu estava do outro lado do parque ouvindo outra canção da tal banda, e ele me disse que havia um ângulo melhor para eu admirar a catedral. Eu disse que gostava dali, daquela árvore me atrapalhando a vista, mas resolvi levantar e acompanhá-lo porque me senti só, e precisava conversar. Ele me disse seu nome, que estava ali todo dia, professor aposentado, como é bom caminhar por Compostela. Estamos perto do mar, você sabe? Canadá, Rússia e algum outro lugar que a minha geografia íntima não seria capaz de imaginar. Ele se despediu, e eu continuei aqui. Ainda sinto o sol bater em fragmentos na minha pele, e gosto disso, gosto desse calor que me faz esquecer os sonhos da noite passada. Eu sonhei com coisas e pessoas que nunca terei – sei que pessoas não são coisas que podemos ter, mas você entendeu o que eu quis dizer. Mas aqui estou eu, fragmentada pelo sol nesse domingo que podia durar a vida toda.
Ou pelo menos o verão todo.
(Ouça Samba de verão, Caetano Veloso)

(@nathalieg)

sábado, 11 de junho de 2016

Insuficiência

Tá tudo espalhado em cima da cama. Tá tudo explodindo dentro do armário, quase arrebentando a porta e invadindo os poucos caminhos possíveis nesse quarto. Tá tudo saindo pelos poros, como gotas de oleosidade, como cravos nojentos porém suculentos aos dedos ávidos em forma de pinça, borrando a maquiagem, craquelando o sorriso, dramatizando o olhar.
Tá tudo gritando dentro de nós. Porque esse ser que nos habita o corpo é mal educado, não sabe falar baixo, não sabe ser discreto. Precisa transbordar em versos aleatórios e berros desnecessários, criando uma falsa euforia que contagia as entranhas e outros elementos anatómicos sujeitos a exageros literários. Transbordamos. Não cabemos em nós, e por isso buscamos espaços alheios, mesmo que sejam mínimos, quadrados, sem ar circulando. E então descobrimos que não somos o suficiente. Ninguém é suficiente. Isso não existe. É apenas um número; às vezes um graveto, às vezes um pato, duas bolas pela metade, um palito sustentando um quarto ou um círculo que representa o nada, o que talvez seja a ideia mais assertiva por trás desse bando de tiros no escuro que os livros ensinam...
Chega.
As palavras somem quando mais precisamos delas – quando a bagunça está aí, gritando, invadindo o pouco espaço que temos. Não cabemos em nós. Não cabemos nos outros. Porque não somos simples como caixas. Carregamos bem mais do que elas. Somos só esse monte de vontade, de história, de medo. Somos o medo que sentimos do que ainda não chegou, mas que sabemos que seja o que for, tem poder suficiente para nos quebrar as pernas – ou melhor, para nos roubar as palavras. E quando vem a onda, quando vem o choque, o “de repente” que faz os filmes serem filmes, não somos os mesmos. Aumentamos, dilatamos, explodimos.
Transbordamos.
E o que nos resta é aquilo que dispensa aleatoriedades, fatos, desculpas, resoluções. O que nos resta é o momento. O presente. Rasgamos a embalagem ou guardamos o embrulho para alguma ocasião futura? Não sabemos. Só queremos fazer um momento que se queira congelar, que supere as dimensões das nossas caixas. Um momento que nos revele aquela verdade irrefutável: o tamanho não existe.
Enquanto isso, a bagunça aumenta. Já não cabe mais. Imensurável.

(Ouça Como dois e dois, Gal Costa)

(Federica Cipriani)



quarta-feira, 8 de junho de 2016

Alameda 1

Haja memória pra lembrar de tudo
Isso
Haja doença pra esquecer de tudo
Isso.
*
O céu,
na mais perfeita sintonia com o tempo,
fazendo todos os assuntos do momento se resumirem
a pétalas largadas no chão.

Os pássaros,
numa orquestra de passos bem sincronizados
pelos transeuntes
repousam sua calmaria nas folhas
agitadas pelo vento,
e tudo vira primavera,
e tudo dança:
as cores,
as penas,
as pernas,
as dores.
Tudo diminui
conforme a brisa aumenta.
Tudo silencia
conforme a brisa grita.

Inclusive este poema.

(Ouça Outono, Djavan)

(Nathalie Gonçalves)

domingo, 5 de junho de 2016

Cinco horas

Jogo a pintura no rosto. Seja o que deus quiser.
Aqui o dia já chegou na metade. Aí, mal começou.
Já tem gente nos parques, nos gramados, nas mesas de bar, colados em suas  taças de vinho. Já tem música correndo nos meus ouvidos: uma canção azul, com trechos em francês pedindo desculpas por não compreender francês – ironia do dia.
Se o sol começou a brilhar por aí nesse instante, aqui já viramos purpurina.
Estranho olhar o relógio e pensar no tempo como vilão. Os ponteiros são espadas. Os números, maratonistas.
Estranho pensar que o passado, o presente e o futuro podem se juntar em uma só mensagem, em palavras soltas digitadas velozmente ou ditas no calor do sono ou no estalo da fome que precede o almoço. Estranho ontem, hoje e daqui a pouco – talvez amanhã. Estranhamos.
As pedras também.
Elas me olham fixamente. Eu aqui, nesse banco de praça, esperando o domingo passar. Elas no foco da minha câmera, na perditude dos meus olhos. Elas dizem que sobreviveram. Que sobrevivem, e que de vez em quando vivem, quando religiosamente fotografadas ou quando o sol resolve acariciá-las de leve (antes do verão, acredito). Estão aí há séculos, e já viram coisas que os nossos olhos nem imaginam. No centro da imagem, elas já estão acostumadas com os passos apressados dos turistas que apenas registram sem ao menos tocarem ou sentirem tudo isso.
Tocar. Sentir.
Ouvir somente a respiração alheia. Roubei essas palavras das pedras que me olham.
Cinco horas.
Um avião. Dois, talvez.
Um oceano.
Algumas canções.
Muitas cenas de filme.
Planos. Poucos, porém bons.
Tetos.
Madrugadas.
De repente, a distância é ínfima. Quebra-se ao meio ao som do bom dia. Vira pó nas nossas mãos imaginárias que se apertam, que se cruzam, que se entrelaçam.
De repente, descobrimos que somos tudo, menos inteiros.
Somos fragmentos de nós mesmos.
Somos mais que horas. Que todas as cinco.

(Ouça Belle, Jack Johnson)

(Nathalie Gonçalves)