sexta-feira, 20 de maio de 2016

Biriça

Estava fazendo bolinhos de chuva quando pensei nela.
Foi na mesma semana em que deputados protocolaram um decreto que impede transsexuais de usarem seus nomes sociais na vida social (que frase estranha, nossa). Até hoje não sei qual o seu nome de batismo. E acho que nunca tive curiosidade, até porque não me interessava nem um pouco.
Ela cortava o cabelo da minha bisavó. Era uma figura icônica, sabe? Magra, alta, cabelos vermelhos, pele morena, os pêlos à luz de Blondor, as sobrancelhas desenhadas a lápis, sempre de shorts e sandálias rasteiras. Nunca conversamos muito. E mesmo que conversássemos, bom, não sei o que uma garota de sete ou oito anos poderia querer saber. Eu só sei que admirava tanto aquela figura que sempre ficava entusiasmada quando ela chegava na casa da minha bisavó.E quando diziam “O Biriça chegou”, eu não entendia. Por que “o” se pra mim era um mulher? E por que Biriça? Por que não Vanessa, Joana, Gabriela? Será que ela escolheu esse nome?
Ela era bem mais do que as roupas femininas que vestia. Pra mim, foi a primeira representação de empoderamento que eu conheci – e olha que no início dos anos dois mil eu não imaginava isso, nem mesmo sabia que essa palavra existia. Biriça me ensinou a ser mulher, assim como minha mãe, minha vó, minha bisa, minhas tias, minha madrinha. E até pouco tempo atrás eu achava que a diferença entre ela e as outras mulheres da minha família era o fato de que ela havia escolhido ser mulher. Mas não, ela não escolheu isso. O que ela escolheu foi dar a cara à tapa, foi se assumir sem medo das piadinhas de mau gosto e do preconceito sempre presente. Ela tinha a postura altiva, dura, quase um ar de superioridade. Eu podia não entender muita coisa naquela época, mas eu sabia o que ela queria dizer: “eu já passei por muito coisa e ainda passo, portanto me respeite. Acima de tudo e qualquer coisa.”
Eu via coragem nos olhos dela. E admirava tanto aquilo que às vezes até me assustava.
Não sei como ela está hoje em dia. Lembro-me de alguém dizendo que estava doente, mas não sei qual era a doença e se ela melhorou. Mas de uma coisa eu sei: sou grata a ela por ter me ensinado tanto com pouquíssimas palavras. Tento imaginar tudo que ela passou – um travesti numa cidade pobre tratado como piada pela maioria não parece  ter uma vida fácil. E pensar em tudo isso me ajuda a tentar ser mais forte e lutar cada vez por respeito acima de tudo e qualquer coisa, como Biriça me ensinou com seu jeito de ser.
Biriça não é, nunca foi e nunca será um “traveco” como muitos diziam. Ela sempre será parte da minha formação e de uma luta por todos que deve ser de todos.
Can I get an amen?

(Ouça Mad sounds, Arctic Monkeys)

(Gabriela Delgado)

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Mapa astral

Toda manhã é a mesma coisa: antes mesmo de escovar os dentes, de lavar o rosto ou pensar no que aprontar para o café, ela abre o e-mail, checa a caixa de entrada em busca de um novo “alerta de novo trânsito astrológico”. Depois de ler a mensagem, vai num site de notícias que aponta as previsões do dia de acordo com o signo e a frenética movimentação dos planetas – sério, é como se eles dançassem algum ritmo louco demais para as pernas dos pobres mortais. Ela sou eu, você e tantos outros que, por mais que neguem, acreditam em cada palavrinha escrita no horóscopo. Ela pode ser ele, pode ser “it”, mas nunca é qualquer coisa – ainda mais se for leonina, vai por mim.
Faz tempo que eu joguei minha vida nas mãos de Deus e dos planetas. É um ritual estranho, desesperado, ridículo. Você se entrega ao que te “define” por achar que a sua data de nascimento é responsável pela forma como você encara a vida – e também pela forma como a vida encara você. Então vale tudo: entre se afogar num poço de lágrimas marcado pela maldição do inferno astral pouco antes do aniversário a culpar o signo pelo seu dedo podre (ou por ser o alvo de muitos dedos podres por aí).
Você pode até me julgar. Mas antes, me responde uma coisinha: você nunca parou pra pensar na precisão das palavras que descrevem o seu signo? Nunca teve aquela curiosidade que te moveu a buscar o signo do/da amiguinha pra saber se é compatível com o seu?
Você nunca se sentiu entediado ao ver que a sua vida não segue um roteiro cinematográfico movido por um “de repente”?
Você nunca esperou por uma mudança brusca, mesmo sabendo que depois iria dizer “eu era feliz e não sabia”?
Você nunca tentou ficar sem pensar em como seria a sua vida se acontecesse aquilo que você quer, mas acabou pensando sem querer e, por isso, acredita que afastou a possibilidade dos seus planos se realizarem? Nunca teve um princípio de ataque de ansiedade? Ânsia de vômito? Medo? Enjoo? Vontade de chorar? Grito preso na garganta? Dor de cabeça? Cansaço emocional?
E depois de tanto pensar e tentar não pensar, você nunca se sentiu exausto? Sem forças? Com vontade de olhar pro teto e não fazer absolutamente nada além de não existir só por alguns minutinhos?
Acho que estamos mal acostumados. Sei lá, essa velocidade do tempo, essa necessidade de estar em todos os lugares e de fazer tudo que todo mundo faz, esse pulmão cheio, esse fígado jovem e sobrecarregado, essa cabeça a ponto de explodir... Envelhecemos rápido demais. E talvez a questão nem seja o envelhecer, mas sim o fato de que o não conseguimos aceitar a nossa total falta de controle sobre o tempo. Por isso, é mais prático traçar mapas invisíveis a olho nu, explorar astrólogos e se perder entre metáforas e certezas irrefutáveis sobre nós mesmos.
Sim, acredito na astrologia. Meu signo diz muito sobre mim. Talvez tudo o que eu deva saber, mas que eu saberia sem ter que ler nadica de nada. Tá dentro da gente, o resto é orientação. E por mais que a gente conviva com o futuro em pleno presente, nunca sabemos como as coisas vão se desenrolar. Tá aí a surpresa; é tão perfeito que chega a ser irritante. Chega a torturar.
No fim das contas, só precisamos de silêncio e um punhado de fé no que quer que seja. No que queremos, no que precisamos, no que foi, no que é, no que virá.
Também vale ter um pouco de fé que a lua dessa vez vai ser boazinha quando entrar em câncer.
(Um salve para os meus amigos metidos a astrólogos que enchem meu Twitter de certezas místicas e maravilhosas ❤️)

(Ouça Today, Zero 7)

(Christopher Wayne)


quarta-feira, 4 de maio de 2016

Impressões

Dia desses, tentei flertar. Fui lá, dei a cara à tapa, mostrei voz, opinião, fiquei no ataque e pisquei o olho no final. Fui eu mesma. Ou tentei.
Nesse mesmo dia, forcei minha vista sobre “mim mesma”. Sobre o que eu vejo em mim e sobre o que eu quero que os outros vejam. Sobre esse tanto de reflexos forçados que vejo nesse grande espelho repleto de retoques chamado Facebook – e tantos outros caquinhos de vidro que ajudam a compor esse aglomerado. Sobre essa mania que temos de dizer que somos nós mesmos (além de redundante, é cafona), sobre a necessidade de sermos olhados, notados, curtidos, comentados, compartilhados, invejados, desejados, exaltados, colocados num altar – alterados.
O flerte não deu certo.
Já o truque da vista, talvez.
Minha miopia disparou, na verdade.
No meio da madrugada, acordei pensando nisso. Impressões. Pinceladas carregadas de cores alegres e de traços perfeitos. Monet, Degas, Van Gogh. Kardashians, Pugliesi e tantas outras arrobas que agora me fogem. Uma comparação chula, eu diria. Nem tanto, se consideramos tempo, ferramentas, objetivos. No fim das contas, o que fica é a impressão – digital ou a óleo.
Nós somos feitos pra causar. Pelo menos é nisso que acreditamos. E pra isso, pintamos, impressionamos, fingimos, forçamos, gritamos, borramos, choramos e esbarramos no perigoso vale da hipérbole. O clímax é a tela pronta, a boa impressão (que, como manda o figurino, deve ser a primeira) e todo esse conjunto de pinceladas aparentemente harmônicas e muito bem calculadas – o tal do “be yourself”. O clímax desse texto é justamente a falta de clímax; você pode substituí-lo por umas lágrimas em posição fetal que te ajudam a constatar que a criatura que você quer que os outros vejam tortura quem você realmente é. E poderíamos ficar horas aqui ensaiando sobre o que podemos fazer para aposentar os pincéis e nos jogarmos na tela como um balde de tinta. Mas aí, meus caros, perderíamos muito tempo. E muitos flertes. Curtidas então, nem se fala.
Pensar liberta. E torna tudo mais ... feio. Ou seria melhor dizer “verdadeiro”?
Por fim, caí no sono. Quem te abraça de verdade não é a tela, não é o crush, não é o pincel, não é o espelho. É a cama.
(Ouça Automatic, AlunaGeorge)

(Thelma Zambrano)