Já passa das dez. A tevê ligada
reflete a distração – bem como as três guias abertas no computador. Podiam ser
guias espirituais, guias turísticos... Não viaje tanto, moça. Cuidado com a
cabeça. Não se deixe levar por si mesma.
É
nesses tempos de renovação que eu volto à estaca zero. Todos ao redor falam em
promessas, pedidos, mudanças... Eu só penso em cortar o cabelo, arrumar minha
mala, comprar o que falta e fazer o que ainda me resta de velho: molhar o pão
com margarina no chocolate quente, dormir ao som de um jazz batido com pop,
contar os aviões que passam a todo instante e imaginar de onde eles estão vindo,
escrever uns versinhos idiotas que ninguém vai ler, pensar em quem nunca,
nunca, mas nunca mesmo fará parte dessa admirável e um pouco tediosa loucura
que é viver comigo. O tempo passa, os astros chutam possibilidades estranhas
para o futuro, as cores, as canções, os fatos, os retratos, as pessoas, os
sentimentos, os segundos... Tudo se mistura mais de 365 vezes, criando uma
atmosfera de liquidificador que bate tudo com gelo porque esse calor, meu caro,
não é de deus.
Tanta
coisa pra falar. Os dias passaram tão rápido! Os dias se arrastaram! Eu me
confundo entre essas aspas imaginárias que a gente inventa e faz de marca
texto, que empodera com a nossa licença poética... Aliás, “empoderar” foi o
verbo do ano. Quem tem poder? E que poder é esse que não tenho? É algo
especial, sobrenatural, fora da nossa vista quadrada emoldurada por uma armação
Ray-Ban? Por que eu não tenho o poder de fazer tudo ser como eu quero que seja,
ou de ao menos fazer você olhar pra mim, me enxergar, seja você quem for, caro
leitor que eu conheço, desconheço, e que me faz perder a hora de encerrar a
oração com um amém e uma interrogação? Quem seria você? Quem será você? Quem você
já foi um dia? Será que foi você mesmo?
Eu
me sinto fraca. É a dor de cabeça, é o mofo desse ano que ainda não foi embora,
é o calor de verão que ultrapassa os cinquenta graus, é essa saudade estranha
de ser algo que eu provavelmente nunca fui, de ter um poder que nunca, nunca
foi meu. O poder de ser vista, ouvida, respeitada, aplaudida, amada – tão especificamente
que chega a ser grosseria da minha parte. E chega a ser estranho te ver tão
forte aí do outro lado, você e esses seus olhos cansados que pedem um par de
óculos e uma boa dose de certeza. Talvez eu te falte – mesmo que você me leia
de cabo a rabo, ah, meu amigo, não é a mesma coisa, acredite. Mas é que esse
futuro estranho me chama. Esse futuro quer que eu dance, que eu me vire, que eu
me enrosque, me empodere. Pode ser que a sua saudade imaginária aumente. A
minha também há de aumentar. Mas não tem problema: o que seria de nós sem um
pingo de saudade, não é mesmo?
O
tempo passa. A dor de cabeça é a mesma. O vazio também. O mesmo eu falo do som
alto, dos buracos, da programação natalina na televisão. E não há porta-retrato
que te aproxime de mim, simplesmente porque eu não te conheço – talvez eu já
tenha te visto, mas não é a mesma coisa. Vem muita coisa pela frente, e eu não
preciso ler meu mapa astral pra saber disso. Eu sinto. Eu prevejo. Eu escrevo
num livro perdido que faz tudo ter sentido.
Mas
entre todas essas coisas, não se encontra aquela que devia ter acontecido
nesses dias que passaram. Eu não te conheci.
E
eu bem que queria ter te conhecido.
Mas
deixa pra próxima. Ok, não sejamos hipócritas. Deixa pra essa minha cabeça de
vento. Ela precisa trabalhar um pouco, ver se refresca as coisas por aqui.
Feliz
ano velho.
Feliz “podia
ter sido”.
Feliz “tanto
faz”.
Feliz “whatever”.
(Ouça Love is a losing game, Amy Winehouse)