sexta-feira, 17 de outubro de 2014

No mudo



Sempre gostei de lugares cheios. Ônibus, restaurantes, salas de reunião. Gente falando, rindo, reclamando, gesticulando como se o mundo se resumisse em palavras, sons, danças de mãos. Talvez isso tudo seja loucura. Talvez seja apenas uma forma poética de ver o caos, e acabar percebendo que, sem ele, a vida não teria a menor graça.
            Mas é que, ultimamente, a vida tem feito barulho demais - o que me leva a apostar cegamente na primeira opção.
            Em todas as avenidas, opiniões eclodem, buzinam, quase perturbam. Tantas vozes fazem uma só – deturpada, estranha, como se saísse de um desses filmes toscos de horror. Desaprendeu-se a falar; todos gritam. Ninguém canta. Ninguém dança. Ninguém pula carnaval. Talvez a quarta-feira de cinzas seja mais colorida que esses dias cinzas e roucos, porém sempre estridentes. Dias em que tudo parece girar ao redor de cada um, sendo que cada um é realmente um de cada. Vote em quem eu vou votar. Faça o que eu faço. Diga o que eu digo. Pense como eu penso. Liberdade de expressão virou liberdade de opressão. Chuva de verão virou chuva de santinhos sujando a cidade. Balinha de hortelã virou comprimido tarja preta. Arte marcial virou defesa pessoal – e defesa pessoal virou “fazer justiça com as próprias mãos”. E fazer justiça com as próprias mãos... Creio que o sentido antes tido como “sujo” dessa expressão é o que hoje em dia menos me incomoda. Viramos a Geração Enxaqueca, e nos esquecemos que a defesa é o melhor ataque, não é o ataque que é a melhor defesa. Distraídos venceremos, já dizia Leminski. Só não sei exatamente o que.
            Isso é mais do que uma reclamação. É mais do que um grito de socorro esperando por um salva-vidas não necessariamente musculoso, que apenas não tenha medo de tubarão. Um alarme disparado, um telefonema no meio da madrugada, uma pedra atirada contra a janela, um céu borrado por um relâmpago. Desabafo? Diários foram feitos para serem esquecidos, porque a verdade é que não temos tempo para preencher páginas com o que já passou. A mente é o único diário que vale. Pode ser que isso seja um pedido. Desses que vêm lá do fundo sabe? Só não se sabe do fundo de que. Por alguns segundos – ok, minutos... Horas, pode ser? – então, por algumas horas, queria que fizessem silêncio. Não peço para que acatem ordens ou se deixem levar por golpes, fascismos, narcisismos, não, nada disso. Nem quero que se tornem seres excessivamente filosóficos e dotados de uma chatice incontestável e inadjetivável – sorry, mama. Só quero que parem, parem um pouco, só um pouco. Guardem suas opiniões, seus ressentimentos, seus ataques, suas armas. Guardem essas vergonhas, essas loucuras, esses zumbidos. Não falem. Pensem, mas só se quiserem pensar. Que se dane o que o outro vai pensar. Que se dane o outro. Que eu me dane. Que nós todos nos danemos. Que apenas as coisas mais simples sejam importantes. Olhar o céu, roubar um beijo, trocar olhares, dar as mãos, dormir um pouco, comer aquele risoto de camarão, ok, se você é alérgico coma outra coisa, se você não gosta não coma, se não sente fome não precisa comer, faça o que quiser, faça como quiser, mas não me faça fazer o mesmo que você. Nesse momento, não nos lembraremos que todos somos um porque a intenção é perder de vista quem achamos que somos. Só nos vale a certeza de que já nos perdemos há tempos. O que vale é a textura da água, o papel cortando o dedo, o sangue em conta-gotas, o perfume da brisa fresca, a nuvem passeando, o avião berrando, o pássaro pousando, a lua brilhando, tudo ando, tudo anda, tudo indo... Mas todos parados. Quietos. Calmos. É no break que a gente se conserta. E depois concerta. Para nós mesmos.
            Depois dessas horas, seremos nós mesmos. Não, seremos mais do que nós mesmos; seremos o todo. Que para, que pensa, que age, reage, reflete. Que entende, Respeita. Ouve. Dá descanso pra garganta. Que alimenta o cérebro.
            Mas esse é só um pedido. E se esta for só mais uma forma poética de enxergar o caos, tudo bem. Pelo menos é uma forma diferente.
            No mais, chega de falar. Chega de frases congeladas requentadas no micro-ondas. Chega de palavras. Temos mais coisas legais no nosso corpo além dela – sem contar as suas outras funções que renegamos por puro esquecimento.
            Chega de tudo. 

 (Ouça l'autre valse d'amélie, Yann Tiersen) 



(Tumblr)

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