terça-feira, 28 de outubro de 2014

Tequila



- Preciso de algo mais forte.
            Restaurante lotado. Num mar de trabalhadores entediados, casais esfomeados (ou seria o contrário?) e crianças chorando, pois sim, em todo lugar há espaço para crianças chorando, Márcia via o mundo girar. Como se dançasse nas bandejas que voavam por entre as mãos dos garçons. Como se o mundo fosse uma eterna bandeja voadora.
            Chamou o garçom. Estava cansada, os olhos esbugalhados; a cadeira à sua frente estava vazia, a mulher sozinha, zonza, cheia de vírgulas, morrendo de medo dos pontos finais... Chamando as reticências para não chorar. Ó mundo cruel.
- Três doses de tequila, moço. Com limão, com sal, açúcar, adoçante... Da forma mais forte que houver.
            Enquanto esperava a bebida, sua cabeça foi escorregando até se enfiar por entre seus braços. Encarnando uma tartaruga, sentia que assim podia fugir do mundo – e naquele momento, era isso que ela mais queria. Tentava chorar, nossa, fazia um esforço enorme... Aquela música lounge, aquele cheiro de molho, aliás, aquela mistura de cheiros, o carrinho de sobremesas massacrando pés alheios com suas rodinhas, as risadas movidas pelo clima de descontração, a luz clara vindo da rua contrastando com a luz fraca do ambiente, máquinas de cartão imprimindo notinhas, cardápios sacolejando e enlouquecendo fregueses, caos e calmaria... Lá se foi Márcia e suas forçadas lágrimas de agonia. Congestão lacrimal.
            Mas a tequila chegou.
            Primeira dose: de uma vez só. Tossiu. Uau, isso não é de Deus. Seus órgãos ardiam. As coisas pareciam girar mais e mais.
            Segunda dose: pensou em gritar. Quase gozar. De dor, talvez. Quem goza de dor? Quem sofre, quem não escolhe sofrer mas mesmo assim sofre, quem se entrega. O mundo parou de girar. O mundo parou. A cabeça latejou. Precisava de mais daquilo, ou morreria em segundos.
            Terceira dose: Márcia não era mais Márcia, era a mulher que esperava se encher de tequila até subir na mesa e dançar nua para espantar seus problemas e zombar da solidão. Era a mulher que esperava, esperava, esperava... E nunca era parida. Quantas doses mais ela precisa virar? Mais duas? Três? Dez? Todas as garrafas?
            E todos a olhavam. Teria ela sido abandonada por um grande amor? Já sei, quarentona frustrada, sem família, sem marido, sem amor, dessas que vivem para o trabalho. Será uma dessas lésbicas descontroladas? Que não olhe pra mim, pode acabar se apaixonando e me causando problemas. Será que perdeu o emprego? A família? Os amigos? Deve ser chata, insuportável, dessas que sufocam. Deve ser completamente sem papo. Cheia de dogmas e manias, cheia de coisas que ninguém é capaz de entender. Deve ser a criatura mais chata do universo.         
       De repente, litros de lágrimas se confundiam com gargalhadas estranhas, estridentes, quase convulsões. Encheu as represas da mulher.
            Márcia podia ouvir as malícias alheias. Que bebida mágica!
- Desce mais uma, garçom. E só pra constar: tem gente que não bebe e está morrendo.
            Esse medo dos pontos finais ainda há de mata-la.
            Que seja. Melhor morrer de cirrose.  

(Ouça Espero que um dia, Natiruts) 


(Tumblr)

sábado, 25 de outubro de 2014

Ensaiando opiniões: "Blue Jasmine"

              Passei um bom tempo pensando que “Blue Jasmine” se tratava de uma comédia – mais uma do mestre Woody Allen, aquele que com certeza deve ter feito algum cursinho de guia turístico no passado, porque o cara adora colocar um lugar charmoso e paradisíaco na situação. Ainda não tinha visto o filme, mas eis que, numa bela noite sozinha e sem nenhum braço másculo pra agarrar durante uma sessão de filme de terror, resolvi assistir.
        Ah, e só pra constar: não entendo nada de cinema. Já assisti uma palestra de crítica cinematográfica, mas essa coisa de prestar atenção na câmera ou nos detalhes me dá muito trabalho. Eu vejo filmes pra me divertir, e o ato de pensar na história é involuntário, eu juro. Meu lance é literatura, pura literatura... E foi isso que fez com que eu me apaixonasse pelo Woody, ao ver “Meia-noite em Paris”, um dos filmes mais lindos que já vi em toda a vida.
               Ah, sim, “Blue Jasmine”.
               Em primeiro lugar, Deus, o que é Cate Blanchett? Nunca senti tanta veracidade em alguém como nela. Nunca um Oscar foi tão merecido. Em segundo, como já disse, acreditava que esse filme fosse apenas um bom momento para dar umas risadas; no máximo uma crítica ao que chamamos de high society. Terminei a história invadida pela tragédia: a tragédia da vida que não para, não volta, não quebra galhos. Jasmine é uma trágica personagem da vida real (se é que isso é possível) que nos ensina uma tremenda lição: podemos mudar de nome, de rosto, de jeito, de ares, de casa, de classe, podemos nos modificar por inteiro. Mas não vamos conseguir ser outra pessoa: no máximo, vamos nos perder de nós mesmos... Para nunca mais nos encontrarmos. E quando a lei do retorno bater, a dor vai ser tão grande que vamos enlouquecer a ponto de viciar em ansiolíticos, de falar sozinha no meio da rua e assustar curiosos, a ponto de confundir o presente e o passado por puro medo da realidade. Jasmine é tão literária, tão shakespeariana... De que livro ela saiu, minha gente?
               Pela primeira vez, não vejo o cenário ganhar destaque – apesar da fotografia do filme ser bem satisfatória. Não há espaço ou tempo definido. O que há são personagens ricos e tão absurdamente complexos que só mesmo a visão irônica e às vezes até mesmo carinhosa de Allen para conduzi-los.
               No mais, assista e se perca nas loucuras de Jannete, ou melhor, de Jasmine. Mas não se perca de si mesmo. Nunca. 

(Ouça Blue Moon, Sinatra)

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

No mudo



Sempre gostei de lugares cheios. Ônibus, restaurantes, salas de reunião. Gente falando, rindo, reclamando, gesticulando como se o mundo se resumisse em palavras, sons, danças de mãos. Talvez isso tudo seja loucura. Talvez seja apenas uma forma poética de ver o caos, e acabar percebendo que, sem ele, a vida não teria a menor graça.
            Mas é que, ultimamente, a vida tem feito barulho demais - o que me leva a apostar cegamente na primeira opção.
            Em todas as avenidas, opiniões eclodem, buzinam, quase perturbam. Tantas vozes fazem uma só – deturpada, estranha, como se saísse de um desses filmes toscos de horror. Desaprendeu-se a falar; todos gritam. Ninguém canta. Ninguém dança. Ninguém pula carnaval. Talvez a quarta-feira de cinzas seja mais colorida que esses dias cinzas e roucos, porém sempre estridentes. Dias em que tudo parece girar ao redor de cada um, sendo que cada um é realmente um de cada. Vote em quem eu vou votar. Faça o que eu faço. Diga o que eu digo. Pense como eu penso. Liberdade de expressão virou liberdade de opressão. Chuva de verão virou chuva de santinhos sujando a cidade. Balinha de hortelã virou comprimido tarja preta. Arte marcial virou defesa pessoal – e defesa pessoal virou “fazer justiça com as próprias mãos”. E fazer justiça com as próprias mãos... Creio que o sentido antes tido como “sujo” dessa expressão é o que hoje em dia menos me incomoda. Viramos a Geração Enxaqueca, e nos esquecemos que a defesa é o melhor ataque, não é o ataque que é a melhor defesa. Distraídos venceremos, já dizia Leminski. Só não sei exatamente o que.
            Isso é mais do que uma reclamação. É mais do que um grito de socorro esperando por um salva-vidas não necessariamente musculoso, que apenas não tenha medo de tubarão. Um alarme disparado, um telefonema no meio da madrugada, uma pedra atirada contra a janela, um céu borrado por um relâmpago. Desabafo? Diários foram feitos para serem esquecidos, porque a verdade é que não temos tempo para preencher páginas com o que já passou. A mente é o único diário que vale. Pode ser que isso seja um pedido. Desses que vêm lá do fundo sabe? Só não se sabe do fundo de que. Por alguns segundos – ok, minutos... Horas, pode ser? – então, por algumas horas, queria que fizessem silêncio. Não peço para que acatem ordens ou se deixem levar por golpes, fascismos, narcisismos, não, nada disso. Nem quero que se tornem seres excessivamente filosóficos e dotados de uma chatice incontestável e inadjetivável – sorry, mama. Só quero que parem, parem um pouco, só um pouco. Guardem suas opiniões, seus ressentimentos, seus ataques, suas armas. Guardem essas vergonhas, essas loucuras, esses zumbidos. Não falem. Pensem, mas só se quiserem pensar. Que se dane o que o outro vai pensar. Que se dane o outro. Que eu me dane. Que nós todos nos danemos. Que apenas as coisas mais simples sejam importantes. Olhar o céu, roubar um beijo, trocar olhares, dar as mãos, dormir um pouco, comer aquele risoto de camarão, ok, se você é alérgico coma outra coisa, se você não gosta não coma, se não sente fome não precisa comer, faça o que quiser, faça como quiser, mas não me faça fazer o mesmo que você. Nesse momento, não nos lembraremos que todos somos um porque a intenção é perder de vista quem achamos que somos. Só nos vale a certeza de que já nos perdemos há tempos. O que vale é a textura da água, o papel cortando o dedo, o sangue em conta-gotas, o perfume da brisa fresca, a nuvem passeando, o avião berrando, o pássaro pousando, a lua brilhando, tudo ando, tudo anda, tudo indo... Mas todos parados. Quietos. Calmos. É no break que a gente se conserta. E depois concerta. Para nós mesmos.
            Depois dessas horas, seremos nós mesmos. Não, seremos mais do que nós mesmos; seremos o todo. Que para, que pensa, que age, reage, reflete. Que entende, Respeita. Ouve. Dá descanso pra garganta. Que alimenta o cérebro.
            Mas esse é só um pedido. E se esta for só mais uma forma poética de enxergar o caos, tudo bem. Pelo menos é uma forma diferente.
            No mais, chega de falar. Chega de frases congeladas requentadas no micro-ondas. Chega de palavras. Temos mais coisas legais no nosso corpo além dela – sem contar as suas outras funções que renegamos por puro esquecimento.
            Chega de tudo. 

 (Ouça l'autre valse d'amélie, Yann Tiersen) 



(Tumblr)

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Ensaiando opiniões #1: "A estrada da noite", Joe Hill



               Já que dar opinião tá na moda (ainda bem), resolvi dar a minha também. Não sobre política; sempre gostei desse assunto, mas se apreciássemos com maior moderação, eu não estaria tão cansada de ouvir falar sobre isso – quantas opiniões eu já dei ao longo desse parágrafo? Duas? Três? Já perdi a conta. Isso que é bom em ter blog pessoal.
               Eu pensei em falar sobre música, mas é que as músicas que eu ouço, bom, poucas pessoas ouvem. Não que sejam ruins. Também não se trata de um estilo alternativo – pra mim, chamar alguém de alternativo é o mesmo que chamar um gordo de fofinho. Simplesmente eu sou a única pessoa entre as que conheço que gosta das músicas que ouço. Se é que eu realmente me conheço.
               Então decidi falar sobre livros, e se você não lê os que eu leio... Como eu já disse, esse é blog pessoal. E essa é uma conversa ensaiada. Portanto, nunca existiu. ;)
               Ainda não terminei de ler o livro que será o tema dessa suposta conversa. Ah, sim, o fim me interessa muito. Mas aconteça o que acontecer, eu não me decepcionarei: a história é tão boa que compensa todos os outros elementos que possam vir a derrubá-la.
               Antes dele, eu havia começado “O pacto Cassandra”, de Robert Ludlum. Baixei por baixar, li por ler, e o começo parecia bem legal... Até chegar a hora em que eu tinha que fazer uma lista com os nomes dos personagens e o que cada um fazia na história. Acho que não cheguei à metade.
             Aí comecei “A estrada da noite”, Joe Hill. Eu gosto de ler títulos que nunca ouvi antes, essa coisa do desconhecido me fascina. E sempre tive grande curiosidade em ler histórias de terror – aprendi a gostar de filmes do gênero. De repente, eu estava lendo um terror de verdade. Desses que você precisa imaginar a história, o susto, o medo. Não está pronto para você embarcar; você precisa criar cenários, rostos, vozes, ações, reações, tudo isso seguindo linha por linha, sem parar. Ah, sim, o susto é muito maior quando você está numa sala de cinema e vê um monstro, espírito, sei lá o que se manifestar. Mas quando você lê acaba entrando na história. E quando entra na história, o susto não é o problema, é só mais uma reação do personagem Você (isso me lembra “Se um viajante numa noite de inverno”, depois falo sobre ele). O problema é que você não quer sair da história.
             Um roqueiro cinquentão (primeiro eu imaginei o Ozzy, mas depois pensei bem e... Não, tem que ser alguém mais bonito, vamos lá, um John Cusack? A imaginação é minha, com licença), rico, reservado e viciado em objetos “macabros” se vê numa enrascada quando compra um terno amaldiçoado. Se essa descrição ficou muito “sessão da tarde”, mil perdões. Judy pensa que o terno é só mais um objeto para sua coleção de coisas assustadoras. Até descobrir que a peça pertencia ao padrasto de uma ex-namorada que se suicidou após o término do namoro. Detalhe: o sujeito morreu. O resto você já pode imaginar.
              As frustrações do protagonista, seus problemas de relacionamento, sua história com Geórgia, aparentemente mais uma de suas namoradas góticas que acaba compartilhando muito mais que a cama com o músico... Os personagens são apaixonantes. A história, meio batida para alguns, às vezes é coadjuvante perto da riqueza de Judy, Geórgia, Flórida, o fantasma do padrasto... Até os cachorros do roqueiro envolvem o leitor. Como já disse, ainda não acabei de ler. E não sei se quero que acabe. Por mim, essa estrada seria infinita, mas o futuro da história depende do leitor.
               Para quem não sabe, Joe Hill é filho de Stephen King – aí você percebe que a coisa vem de berço. O livro foi lançado aqui no Brasil em 2007 pela Arqueiro. E não, eu não comprei. Baixei de graça, não nego. Compro quando tiver dinheiro e uma biblioteca cheia de estantes para guardar.
               Ah, e não darei estrelas, pois não sou professora. Nem ginasta.
               Nem engraçada. 

(Ouça The Jack, ACDC)


 (Judas Coyne, segundo o Google)