segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Amuletos



      Dia desses, tirei meu cordão favorito pra colocar um colar e sair à noite – só pra combinar com a roupa e agradar o espelho. Passei maquiagem, me emperequetei. Lá fui eu sem meu cordão da sorte. Às vezes, eu passava a mão no pescoço e só encontrava um fio diferente, que não me pertencia. O espelho se agradou, mas sei lá, não tive a melhor das sensações. Cheguei em casa e jurei pra mim mesma que era tolice, ia passar. Resolvi ficar sem cordão, sem colar, sem nada – só o pescoço e acabou. Mas é que o vazio foi ficando grande, grande, grande... E lá fui eu atrás do meu velho cordão de guerra.
       Hoje minha pulseira arrebentou. Caramba, como eu gostava dela. Era colorida, toda colorida, e ao mesmo tempo discreta. Eu gostava de brincar com sua firmeza no meu pulso, com suas cores, suas pedrinhas minúsculas. Acho que não tem conserto: perdi um amuleto.
Amuleto? Que amuleto?
      Desde criança, eu vejo nos filmes que todo mundo tem um amuleto. O Indiana Jones tinha aquele bendito chicote; rapaz assanhado, hein. As princesas davam escapulários aos seus amados, que a davam flores, alianças, pedras, fotos, whatever. Enchiam suas mulheres de tralhas. Enchiam-nas de ilusão. Homens.
       Acho que também acredito nisso. Eu uso um anel amassado, mas eu tenho tanto carinho por ele que, sei lá, é meu amuleto. Me dá sorte... Sorte? Eu não sei se é bem isso que quero quando guardo algo especial. Sorte eu tive quando vivi o momento. Sorte eu tenho de me lembrar dele até hoje. Me deixou uma marca, uma joia, uma pétala seca que eu guardo nu fundo da gaveta pra sei lá, ficar lá pro resto da vida. Mas e os momentos que deixam memórias físicas, porém não são necessariamente especiais?
       É por isso que me desfiz dessa ideia de amuleto – bom, pelo menos essa coisa de me ligar ao material eu tô tentando deixar pra trás. Minha vó sempre diz: do que adianta ter tanta coisa se nada disso vai com você pro caixão? E é mesmo. E eu nem sei se eu vou pro caixão, vó. Não quero te assustar, mas eu sou imortal. Segredinho, hein.
      Sabe o que me dá sorte? Gente. Vida. Seres animados. Que me entendem, me acompanham, me respeitam, me inspiram. Mais do que o anel, o cordão, a pulseira, a pétala velha no fundo da gaveta, a foto amarelada, o ingresso do cinema, a carta... Mais do que qualquer lembrança física, a recordação daquele momento que já virou eterno muito antes de acontecer. Essa coisa de sorte é pra quem joga no bicho ou grita “bingo” todo domingo. O importante, meu bem, é ter alguém pra chamar de meu bem. Amigos, família, parceiros, cúmplices, companheiros, amantes. Mais importante que ter sorte é ter amor, é ter base, é ter sustento emocional, humano. É ser humano e ter força pra jogar os dados. As pulseiras que se arrebentem, os cordões que se percam, as pétalas que se desmanchem. Tem vezes que o abstrato é muito mais forte do que o concreto.
         De qualquer forma, tô com meu cordão no pescoço. Não é talismã; é mania mesmo.

(Ouça Sorte, Caetano Veloso)

 (Tumblr)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Reticências



Me disseram uma vez que essa coisa de se jogar é doença, sinal de total desajuste. Me disseram também que começar oração com pronome oblíquo é erro inaceitável, um crime contra a gramática. Será que posso alegar motivo de doença quando me condenarem? Tomara. Pela minha liberdade, eu faço de um tudo... Até me prender eu me prendo.
               Tem coisas que eu não sou capaz de entender. Introduções, por exemplo. Começos são tão difíceis! É quase impossível não empacar no primeiro parágrafo, na primeira etapa, na primeira tentativa. Ou você supera ou você desiste. Confesso que de muitos eu desisti, e apesar da decepção, fiquei aliviada; afinal de contas, um desenvolvimento complicado a menos. Mas e os que eu superei? Foram poucos, seguidos por péssimos pontos finais-continuativos. Mas é aquilo: se queremos viver, é necessário simplesmente sobreviver de vez em quando.
               Desenvolvimentos? Meu Deus, morro de medo. Arranco meus cabelos só de pensar. Não há como não se envolver com eles, mas se envolver a ponto de enlouquecer. Ninguém quer encher linguiça, ninguém quer cometer erros... Mas olha, não tem como. Não existem histórias perfeitas. Ou você se contém e faz uma porcaria ou você se joga e faz uma bela porcaria – pelo menos você ganha um adjetivo... E um belo galo na cabeça.
               Meus desenvolvimentos sempre me exigem coisas que eu acho que não sou capaz de dar. Palavras estranhas, frases complicadas, figuras de linguagem que mais parecem códigos indecifráveis. Respeite minha coleção de traumatismos cranianos.
               Meu problema são as conclusões.
               É quando eu sinto meu corpo caindo, meus ossos chacoalhando, e tudo que eu sou é um presunto no chão. Finais, despedidas, game over, “pudemos concluir”... Eu não posso concluir nada. Não quero concluir nada. Conclusões são mortais. Deixa eu continuar arrancando os cabelos, deixa eu morrer tentando fazer a história engrenar! Mas não me peça para dar o fatídico ponto final.
               Pelo bem da minha história, dispenso até mesmo as referências bibliográficas. E os colchões amortecedores de queda.
               Por isso, não quero pontos finais nessa conversa. Fico com a vírgula, ou melhor, com as incríveis, cafonas e eternas reticências...

 (Ouça Virgem, Marina Lima)

 (Budi Satria Kwan)


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A lista de presentes



               Dia desses, falávamos sobre casamento. Não sei como entramos no assunto, mas sei que eu saí cheia de ideias pipocando aqui dentro. Falávamos sobre essas festas enormes, sobre essa indústria do relacionamento, ah, sobre todas essas coisas que dizemos nos incomodar até um par de véu e grinalda aparecem na nossa frente e um litro de lágrimas rolar. “Me irrita essa gente que gasta uma fortuna na festa e pede até tapete na lista de presentes”, disse uma amiga, claro, em tom de revolta. Rimos, afinal de contas isso não faz nenhum sentido... Opa. O casamento não faz sentido. Sim, estou falando do conjunto da obra. Do véu, da grinalda, do noivo, da noiva, da festa, da lista de presentes. É muito mais do que uma instituição falida: é uma farsa.
               O que vejo por aí são casais estranhos, quase desconhecidos, unidos por um sentimento prematuro que promete grandes voos, mas que, quando violado pela precipitação e pela necessidade de mostrar à sociedade que os cidadãos envolvidos são de bem e querem constituir uma família (?), acaba se tornando inferior à poeira que reveste os álbuns de fotos. Casais que acreditam em pedaços de papel, em tradições toscas, quase risíveis. Casar-se de branco. Não deixar o noivo ver a noiva antes do “sim”. Marcha nupcial. Homem e mulher. Vestidos tão justos que é preciso um balão de oxigênio ao lado da noiva. Daminha, pajem, lua de mel, bem casado, olho de sogra, sogros, pais, parentes, aquela vizinha invejosa que deseja que seu casamento não dure nem três meses, a obrigação de procriar. A terapia de casal. O contrato pré-nupcial. Meu Deus, um contrato. Advogados. Como é que vocês não enlouquecem com isso?
               Mais do que ser contra relações burocráticas, sou contra tudo que pressiona, tudo que cobra, que obriga. Amor não é isso. Não é gastar rios de dinheiro numa festa que nada mais é do que um presente à sociedade “moderna” e “digna”. Não é se jogar num bando de tradições. Não é assinar papéis, fazer contratos, listar as etapas a serem cumpridas como se a vida fosse um grande e cansativo video game. Amor não é casamento – ou pelos menos não é esse casamento que conhecemos.
               Escolher passar a vida inteira ao lado de alguém é a loucura mais linda que eu já vi. Dedicar-se, admirar cada sorriso, enfrentar cada perrengue, se entregar, brigar de vez em quando, deixar o orgulho dar seu chilique mas depois ceder, fazer as pazes, viajar, viver a rotina, tentar quebrar a rotina e acabar fazendo disso rotina, aceitar que o dia a dia pode ser incrível e que você não mudaria nada, nadinha, nem uma gota... Depois de um tempo, festejar o que já foi vivido com um churrasco, uma festa de gala, uma viagem, uma noite num hotel bacana, sabe, só pra tomar um fôlego mesmo... Trocar alianças, sejam elas anéis, brincos, cordões, mãos dadas, fotografias, sorrisos. Vestir-se de branco... e de azul, amarelo, verde, roxo, vermelho, todas as cores, sempre com o intuito de se agradar e de agradar quem se ama, autoestima, bem estar, coisa de gente doida. Só os doidos são felizes porque eles se entregam, se permitem, escolhem serem escolhidos e são escolhidos por suas escolhas, quanta piração! Há mais mistérios e coisas incríveis entre dois seres do que sonha a vã burocracia. Coisas que desvendamos aos poucos, sem precipitações, dívidas, clichês, hipocrisias. E sobre o fato de construir uma família: olha, já ficou mais do que provado que casamentos não são responsáveis por isso. Famílias são construídas e moldadas pelas circunstâncias da vida, e principalmente pelo amor.
               Por isso, não quero me casar. Pode chamar de doideira, filosofia de vida, meta, ah, eu perdi o dicionário, faz favor. Eu quero viver todos os sentimentos que me forem oferecidos, cada partícula, cada centésimo, grão por grão. A pessoa certa não existe, o que existe é o sentimento certo. Quero vive-lo, quero dar todos os passos que meus pés cegos quiserem dar, enfrentando situações, me deixando levar, rolar, eu quero é crescer. E aí, quando estivermos sem fôlego, cansados, exaustos, no problem: vamos fazer um churrasco para comemorar tamanho cansaço, seja qual for sua razão de ser.
               “Poxa, mas quem casa quer casa”. Eu não quero casar, e a minha casa é o mundo que eu descubro a cada dia - ok, sem hipocrisia, a parte da casa eu quero de qualquer forma. Admiro quem vive relações duradouras, eternas, quase sobrenaturais de tão fortes. E pra isso, não é necessário se deixar “molhar” por uma chuva de arroz. Basta amar. Basta querer. E como eu já disse alguma vez, o resto é resto.
               No mais, de onde foi que tiraram o nome “lua de mel”? Me parece doce demais, mas tudo bem, eu respeito, até admiro.
               Sério. 

(Não sei se já indiquei essa música, mas só penso nela: I got you, Jack Johnson)

(Christian Dior)
(Se um dia eu ganhar o Nobel de literatura ou o prêmio Jabuti, é esse vestido aí que eu vou usar ;) )

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O que quero



Eu não quero ter palavras
Não quero ter fôlego
Não quero ter ar
Quero ter algo
que não se tem
que não se define
que não se compra, não se troca
mas se dá

Algo acima das descrições
dos versos retos, dos estilos
sem precedente
sem descendente
longe do vazio

Algo que se grita
que se multiplica
que se transforma
em matéria
física
química
qualquer coisa explosiva

Que queima como brasa
e refresca o que já dói ao arder
que te toca
que transborda
que ninguém conhece
mas mesmo assim quer ter

Eu não quero nada que eu deva citar
Reclamar
Declamar
Quero algo que não existe
mas que a gente inventa
com a palma da mão
com o toque da pele
com o dom da língua.

O que eu quero é tudo que eu posso te dar. 

(Ouça Eu queria ter uma bomba, Barão Vermelho)


 (Erich Nagler)


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Réveillon



   Faz quase um ano, mas eu me lembro como se fosse hoje.
   Não adianta: mesmo que a cidade tenha o adjetivo “frio” no nome (e então o frio se torna parte do substantivo próprio, o que não deixa de ser louco), as noites de dezembro são quentes. Assim como foi a primeira noite depois que meu avô faleceu. Assim como a noite de natal. Bom, no Réveillon não seria diferente.
    Em lugar de praia é assim: se você quer ver os fogos brotando do mar, precisa se antecipar. Ainda mais em Cabo Frio, cidade grande que só, cheia de gente, de pés, de rodas, de pressa... Uma extensão respeitosa do Rio de Janeiro. A tradição do branco eu até aceito, mas ainda penso em lentilhas como algo chato. Pular sete ondas... Olha, deixa pra próxima. O que me traz a esse espaço em branco não é a contagem regressiva, a virada do ano. Eu gosto é de pensar no caminho que fizemos até a praia.
De um lado, meu primo carregava um isopor com todas as bebidas que você possa imaginar. Do outro, meus tios com as mãos dadas, naquele instinto selvagem de proteção que somente os casais na mais plena sintonia conseguem entender. Minha mãe seguia, assim como meus outros parentes, primos, tios, sei lá o que. Só sei que andávamos – não em linha reta, porque a calçada não deixava; vez ou outra tínhamos que desviar de pessoas, de obstáculos, até mesmo de carros. Víamos batidas no meio do caminho – seguir a pé pode ser “divertido”, acredite. Mas seguíamos. Nunca saberei explicar exatamente o que senti enquanto fazia aquela caminhada. O ano estava pra virar... E eu virava mais um ano. Quantos sentidos há nessa frase? Difícil explicar.
   Pernas trôpegas feitas por um caminho mal traçado. Desvios inesperados, buzinas, gritos. Uns brigam, outros choram, alguns sorriem como se a vida fosse apenas um ciclo qualquer: venceu a validade, é só jogar fora e não se esquecer de reciclar a embalagem. Olhares confiantes, ansiosos, amáveis. A falta de conforto da sandália apertada. A sede que vem com a vontade de chegar, de alcançar, de fincar a bandeira... Mas caminhar, mesmo que seja difícil e até mesmo insuportável, é um presente. Um momento tão incrível que não dá descrever. E quando a gente chega, quando a gente alcança, quando a gente finca a bandeira... A gente não se sente realizado. Porque nós queremos as bolhas nos pés, o suor pingando, a sede consumindo as cordas vocais. Nós queremos o cansaço. Nós queremos a esperança. De um ano melhor. De um futuro brilhante. De um dia que começa e termina bem.
    Todos aqueles rostos, aqueles passos, aqueles sorrisos, até mesmo aquelas buzinas e batidas de carro... Tudo aquilo me marcou. O beijo apaixonado que eu dei em pensamento, os abraços verdadeiros que distribuí na realidade, aqueles fogos que brilhavam a ponto de me enlouquecer... Eu senti aquilo, tudo aquilo. A sensação de entrega que só a esperança nos dá. A paz que vem da confusão do réveillon e da magia de acordar todo dia e querer fazer tudo de novo. Caminhar é preciso; chegar é impreciso – desculpa, Pessoa.
     Eis a magia de viver: acreditar. Sentir. Caminhar. Se entregar.
   E o resto não é resto: é janeiro.

(Ouça Lost stars, Maroon 5)

(Nathan Bobey)