segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Começos



É aqui que Marília começa. Atirada pelas forças gravitacionais do seu cansaço já cansado da rotina, a tal mulher de trinta e poucos anos abre os olhos às sete da noite de uma segunda-feira morna em todos os sentidos possíveis num campo semântico insuportavelmente infinito. Acordou com o chiado da televisão que tentava lhe dizer que mais um crime ocorreu em algum lugar no deserto do mundo, e ela pode jurar que ouviu o repórter metido a galã dizer a palavra deserto, e em dois segundos o crime perdeu a importância, assim como o chiado da tevê que foi desligada um segundo antes depois da tal da importância ser dada como pedida na constatação anterior.
                E então Marília levantou.
                Tonta, tropeçou e bateu o mindinho esquerdo no sofá. Diferentemente do caro leitor, Marília não tentou se orientar para se lembrar do lado esquerdo e do direito; apenas xingou um pouco. Dois copos d’água em frente à janela da área de serviço revigoraram seus sentidos, fazendo com que a falsa loira se lembrasse dos afazeres prometidos para o decorrer da noite – como pintar o cabelo de preto para se livrar de uma vez por todas da massacrante vida de falsa loira, desconsiderando que voltaria à loirice dois meses depois, e então arrumaria seus livros que andam espelhados pelo quarto, e então telefonaria para a irmã para pedir alguns conselhos amorosos, e então telefonaria para a namorada para presenteá-la com o prefixo “ex”, e então voltaria à janela da área de serviço para trocar a água por uma garrafa de vinho – o que a faria chorar um pouco, não que ela se importasse com isso. Novamente tonta, enrolaria todos esses “entãos” num saco de lixo e os descartaria sem dó nem piedade, à espera do próximo soluço. Pousaria os olhos no relógio e descobriria a madrugada chegando, e então choraria mais um pouco, mas agora de felicidade; a terça-feira vem com uma folga no trabalho, um despertador desligado e a certeza de que não há coisa mais contraditoriamente maravilhosa do que a solidão.
                Porém, nossa heroína (que ela não ouça este tão carinhoso adjetivo) não contava com novidades. Desiludida, Marília não acreditada em fins (apesar do planejado término de namoro, que ainda contava com umas noites de recaída) – muito menos em começos. Era apegada aos meios, às continuações, às segundas partes das trilogias. Marília era de um mundo em que tudo existe por existir, sem razão de ser, sem razão de viver, sem razão. Tudo era simplesmente corrido, insone e insano. Chato. Sem sal.
                Mas enquanto tramava suas tarefas, o telefone tocou. Foi atender sem pressa, prevendo que nada de importante estava por vir. Devia ser a futura ex pedindo notícias. A mãe cobrando visitas. A irmã querendo saber se estava tudo bem. O chefe comentando o último relatório. A amiga de infância chorando o divórcio. A moça da telefonia questionando o atraso no pagamento da última fatura. O ex marido pedindo mais uma chance. No máximo, devia ser engano.
                Mas não.
                Era da pizzaria.
                Alguém havia pagado uma pizza de frango com requeijão e um refrigerante para Marília. Uma alma caridosa que sabia como ela precisava ficar sozinha – pelo menos naquela noite. Uma alma que entendia Marília. Que lhe fazia perceber que a vida não faz sentido – e por isso mesmo é maravilhosa. De repente, algo começava. Algo pleonasticamente novo e desconhecido. Sem marcas, precedentes ou expectativas. Algo nunca antes visto na história de Marília.          
                Recebeu a entrega. E veio o desafio: quem teria feito a entrega, o motivo, essas coisas. Num cartão que veio junto com a encomenda, um conselho: seja feliz. E quem teria feito a encomenda, meus deuses? Poderia investigar na própria pizzaria; do jeito que era curiosa, gastaria o dinheiro que iria usar para pagar a bendita fatura da telefonia para subornar o gerente, caso fosse necessário. Será que foi a irmã? A namorada? A mãe? O chefe? O ex marido? A amiga de infância? A moça da telefonia? E por que teria feito isso? Seria amor? Vingança? Stalk?
                Mas ela resolveu entrar na brincadeira. Ao invés de se deixar levar por questionamentos tolos, decidiu comer a pizza. Inteira. Nenhuma sobra. Nenhuma cebola encostada na caixa para contar história.
                Farta e mais uma vez jogada no sofá, abriu um sorriso como há tempos não abria. Tentava seguir o conselho do seu admirador secreto. E a barriga pesava tanto que Marília não tinha forças para cultivar ilusões, e não pensava em absolutamente nada para se sentir fisicamente mais leve – só fisicamente mesmo, porque o resto estava ok.
                De repente, Marília havia se jogado num começo. Não sentia medo. Nem fome.
                Só alegria.
                E gases.

(Ouça Save room, John Legend)


(Sylok)
 

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Conta-gotas

                Enquanto esperava as últimas gotas saírem, pensei numa coisa engraçada. Isso faz sentido – uma vez, conversando com um amigo, concluímos que é justamente quando estamos no banheiro que as melhores ideias surgem (acho que ele concluiu primeiro; sabe como é, eu tinha que equilibrar a conversa fazendo a nojenta da situação). E foi bem assim mesmo: eu lá, num momento natural e cheio de bactérias, tive um insight que, se for bem trabalhado, pode dispensar uns bons anos de terapia.
                Cazuza cantou uma frase que sempre me fez pensar bem sobre o que significa esse tal amor que alguns dizem que existem em São Paulo, em Nova York, na China, na casa do cacete: “que prazer mais egoísta o de cuidar de um outro ser/mesmo se dando mais do que se tem pra receber”. Ok, talvez seja apenas um eufemismo para aquela famosa arte de ser trouxa... Se for, bom, pelo menos ele escolheu o momento certo para suavizar algo tão indelicado e desastroso que faz parte das nossas vidas.
                Sempre amei essa música, mas quando chegava nessa parte, batia a onda do conflito. Porque é isso mesmo: o amor é egoísta. Talvez o único ato de egoísmo perdoável nos anais dos atos da classe. Será? Será que todo amor tem que ser assim, compulsivo, estranho, louco, causador de suadouros e responsável por gastos imensuráveis com tubos de desodorante e caixas de tarja preta? E por que apenas o garoto rico que queria uma ideologia pra viver soube realmente definir essa porcaria de sentimentos quando temos uma MPB inteira, meu deus?
                A gente não escolhe amar, é verdade. Mas, na nossa mente fértil (e um pouquinho correta), quando amamos provamos para nós mesmos que não somos psicopatas. E também não escolhemos quem amar; apenas amamos. É o alívio e a tensão no mesmo copo. Dose fatal pior que muita cervejinha metida a besta que derruba você, caro leitor fracote.
                No meu insight conta-gotas, pensei: eu não quero esse amor baseado numa crítica travestida de eufemismo. Não que eu esteja dispensando a loucura – existem momentos em que ela é mais do que necessária, se é que você me entende. Mas é aquilo: que amor é esse que te desgasta, te coloca pra baixo, derruba sua autoestima e te faz desperdiçar sua criatividade literária com cartinhas toscas para alguém que nem se importa com o que você faz da vida? Saindo de um poeta e indo para o outro, anote aí: não era amor, era cilada.
                Decidi me preocupar menos. Sofrer menos. Parar de correr atrás; minhas pernas têm andado bem doloridas ultimamente. Que se dane esse amor cheio de correntes, padrões, manuais e sofrências no meio da noite com uma taça de vinho, um cigarro pela metade e uma Marina Depressiva Lima invadindo a casa com sua voz rouca e suas palavras meio esquisitas de se entender (Marina, te amo, tá?). Que se dane tudo isso. Eu quero mudar todas as músicas. Quero me defender com eufemismos e trocos idiotas que nada mais são do que tentativas honestas de se manter são, salvo e longe dos truques baixos desse sentimento perverso. Ok, pra não dizer que a partir de agora vou sair por aí conquistando pessoas para torcer seus pescoços horas depois, eu até deixo esse tal de amor me pegar. Mas tem que ser tranquilo, leve, sem cobranças, conselhos, dicas, tutoriais, vídeos no YouTube, vapores baratos. Não precisa ser poético, musicável nem mesmo cinematográfico. Tem que ser leve. Tem que ser prático. Inexplicável. Desde que preserve minha alma e minhas pernas, eu topo.
                Pensando bem, vou continuar bebendo bastante água. Vai que surge uma ideia mais sensata e menos ingênua, não é mesmo?



“... Que quem ama nessa vida, às vezes ama sem querer... Que a dor no fundo esconde uma pontinha de prazer...”

               
 (Christophe Cartier)


(Ouça Minha flor, meu bebê, Cazuza)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Míope



Ré confessa: eu não largo o celular. Sete e quinze da manhã, diz o despertador – ele não fala, ele grita. Ele me ensurdece. E eu atraso, enrolo, durmo de novo; que se dane esse dia que tá nascendo lá fora cheio de compromissos e protocolos e gueri-gueris. Sete e vinte e cinco; amiga, mais do que isso não dá. A rotina é a mesma, e eu só deixo esse pleonasmo escapulir nessa conversa porque eu realmente preciso enfatizar como isso tudo é cansativo e me dá sono só de pensar. Entre andar uns quilômetros e estacionar em alguma cadeira, lá se vão uns vinte, trinta minutos – tempo suficiente para a telinha ficar lá, sossegada dentro da bolsa. Mas não dura muito. Mal deu tempo de respirar e já desbloqueei minha foto, já passei o dedo na tela, já me deixei levar.

Virou vício. Eu juro que tento me desvencilhar: “escondo” o telefone e me proíbo de mexer nele durante uma hora. Meu Deus, é a hora mais difícil do meu dia. Meus dedos ficam impacientes; parece até que eu perco a digital. Agonia, ansiedade, doença. Chame do que quiser, eu não me importo. Only God can judge me – isso se ele me seguir no Twitter.

E eu nem me interesso tanto por essas vidas perfeitamente falsas ou falsamente perfeitas. Sorrisos falsos, lágrimas forçadas... Isso é de praxe. Eu nem quero saber disso. Eu não me importo, eu não me importo mesmo, eu não me importo com essa falta do que dizer que poderia dar num perfeito silêncio, mas que acaba desandando num mau uso das palavras que mataria de vergonha qualquer literato. E o mais engraçado dessa vida que me deixa a cada dia mais míope é que não importa a quantidade de vezes que eu atualizo a página: a história nunca muda. É um livro parado. Travado. Previsível. Digno de pena.

O porquê do meu vício? Simples. Trata-se de uma necessidade estranha de estar em algum outro lugar, de me fazer presente, simpática, coerente, alternativa, moderna, linda, angelical, enfim, acumular alguns pedidos de casamentos na caixa de mensagem, quem sabe. Não sei se você sabe, mas já faz um tempo que isso existe: o amor agora é virtual. Merece likes, follows, RTs. O amor perdeu a graça. Virou estratégia de marketing, ação, viral. Aliás, um viral bem ultrapassado. Mas ainda é um vírus. O pior de todos.

Talvez seja por isso que estou aqui, presa nessa tela e “protegida” por um par de óculos que cobre quase metade da minha cara. Porque eu amo alguém, alguma coisa, alguma ideia, algum gesto, alguma mísera esperança de um dia não precisar respirar com a ajuda de aparelhos. Que me perdoem os vegetarianos, mas a carne nunca fez tanta falta. A alma então... Quem é essa recalcada?
Saudades de quando eu não precisava me esconder do mundo para ser eu mesma. Saudades de quando o mundo é que se escondia de mim. Adolescência, nunca pensei que fosse sentir tanto a sua falta.

(Ouça Este seu olhar, Nara Leão) 


(Christophe Cartier)