sexta-feira, 24 de abril de 2015

Bala perdida - 1



                Não me pergunte o que eu estava fazendo lá. Tinha acabado de voltar de viagem, minha irmã não fazia outra coisa além de me perturbar e, se aproveitando da minha preguiça até mesmo de argumentar, me arrastou para aquela festa. Um típico casamento com orquídeas (ou devia ser outra flor parecida) na decoração, música clássica antes do baile funk que anima os convidados já tão falsamente animados, felicidade de revista – você vira a página e logo vem outro riso, outra alegria. Não me pergunte o nome dos noivos. Ester disse que eu os conhecia, mas que isso não importava muito, que eu devia mesmo era me divertir, encontrar alguma mocinha solteira para me ajudar a viver mais trinta e cinco anos de pura frustração e diversão garantida com as pegadinhas nos fins de domingo... Minha irmã parecia uma integrante do núcleo chatonildo dos livros da Jane Austen. Essa proposta furada de “rever a vida” estava me socando o estômago, o esôfago e outros órgãos que agora os tantos anos de medicina e as duas taças de vinho não me permitem citar por pura falta de paciência.
                Eu conhecia a noiva. A desgraçada da Ester bem que avisou, mas eu não sabia que a conhecia tão bem assim. Dez anos após um término difícil que só Deus sabe como foi porque os anos me tiraram essa lembrança, Verônica estava lá, enrolada naquele vestido moldado num tecido estranho e de nome desconhecido, algumas centenas ou milhares de rendas, babados, confusões e gritarias, buquê de rosas vermelhas, luvas – eu juro que pensei que essa moda havia passado, mas tudo bem - enfim, todo um conjunto de panos e absurdos que escondia montes, vales, becos e esquinas que eu desbravei durante quase três anos de namoro. Pelas putas que parem nesse exato instante: que mulher era aquela. Completamente vestida por uma moda insana e usuária fiel de um arco-íris de tarjas. Que mulher era aquela, meu Deus. A suposta mulher da minha vida.
                Deus é testemunha de como eu quis esmagar o cérebro da minha irmã naquele momento.
                Eu e Verônica, mais ninguém. O noivo era apenas um boneco vítima de uma espécie de areia movediça chamada “bolo de casamento”. Os convidados eram colunas que ajudavam a redecorar o ambiente com toques de classicismo. Os nossos olhos eram mais do que necessários para lavar milhares de bacias de roupas sujas de manchas de vinho e frustrações. Eu me lembrei que, um dia, num exultante dia, eu troquei juras de amor com Verônica. Eu já andei no abismo do sofrimento, da dúvida, desses males de amor. E aí eu recuei. Recuei porque é isso que a gente faz, recua, finge que não é com a gente, outras coisas e pessoas virão, ah, calem a boca do Renato Russo quando ele diz que somos tão jovens  - o cacete! Ah, ele já morreu? É mesmo. Que pena. Grande sujeito.
                De início, ela me olhou surpresa. É amiga da minha irmã, até chamou a desgraçada pra ser a madrinha da festança, mas não esperava a apunhalada – éramos dois. A sobrancelha deu um leve salto, uma palidez que não contrastou muito bem com o tom do blush (ou seria a marca de um soco?), uma certa profundidade nas covinhas do rosto. Depois, a certeza: “Droga, ele está aqui, droga, eu devo fingir que superei, droga, pra que lado fica a saída de emergência, droga, quem tem uma arma pra me emprestar”. Engraçado como eu ainda sabia ler a mente daquela criatura. Tentou balbuciar um oi, mas não conseguiu. Nem eu.
                Eu também fiquei pálido. Branco feito cera. Hipnotizado por aqueles olhos que há anos não se encontravam com os meus. Envergonhado por todas as dúvidas, fraquezas, incertezas e imaturidades que me perseguiram durante todos esses anos. Tentando superar o fato de ela ser tão maior, mais corajosa, mais metida do que eu. Sempre peitando meus sentimentos, sempre me jogando num abismo que eu não sei se queria conhecer. Aquela força imensurável dela. Aquela minha fútil necessidade de sair correndo como um garotinho. Também não disse nada.
                Casaram-se. Agora eles têm uma vida linda e maravilhosa num apartamento com uma brecha pro mar, um cachorro que não para de latir e a obrigação de ter filhos comendo-os vivos. Ela não deve fazer o jantar; por mais apaixonada que seja, não é mulher de se fazer objeto pra homem. Devem passar os fins de semana na Serra, naquela monotonia clássica entre cachecóis e pedaços de carne mergulhados num queijo vagabundo derretido. O sexo deve ser bom nos primeiros meses, mas daqui a pouco azeda, que se dane, a vida não é feita disso, eles pensam. A festa passou, me empanturrei de álcool e um salgadinhos massudos, Ester conseguiu a proeza de levar mais da metade de todos os bem casados da festa dentro da sua bolsa-carteira, voltei pra casa, amanhã o voo pra algum lugar onde vai haver algum congresso sai cedo, preciso dormir. Não sem antes disparar aquela velha arma do meu pai bem na minha têmpora, só pra saber se tá boa, se tem que trocar o óleo... Bem que meu pai dizia que eu não sabia mexer com armas. Não se troca o óleo. Nem das armas e nem da vida.
                Da minha vida eu não fiz nada além, não disparei nada, absolutamente nada. Mas daquela arma, ah sim. A bala perdida na roleta agora está alojada em mim. E a sensação é como se nada, absolutamente nada tivesse acontecido. É a vida, não é mesmo? 

(Ouça Stars, The XX) 

(Julie Janney)

terça-feira, 21 de abril de 2015

Sobre o futuro e outras drogas - vol. 2

Deus, como eu preciso comprar um caderno. Me livrar dessa angústia de esperar a máquina ligar, enquanto o tempo corre e faz questão de mostrar o quanto me despreza. As letras sambam perto das três da madrugada. É tudo tão branco nessa tela... Isso me dá medo. É tudo tão escuro lá fora... É isso que me segura. Hoje eu ainda penso no futuro, e me perco em planos que jurei não mais fazer, em ilusões que jamais irei cair novamente... Ah, pobre menina inocente. Ouça-me bem, amor: desligue esse Cartola que ele já falou demais. O mundo é um moinho, a vida é uma caixinha de surpresas, o tempo não para, o amor é pra quem ama... Chega de frases prontas, tudo um bando de lasanhas congeladas que eu como na esperança de saciar a fome, mas acabo na frustração da falta de sabor. O futuro já começou? Piada. Veja bem: eu falei piada, não mentira.
A moça do nariz vermelho apareceu pra mim. Acho que estava naquela crise alérgica de sempre, alergia à vida, às dúvidas, aos clichês. Ela também se joga em um mar de ilusões e promessas que, ô garota idiota, nunca serão cumpridas. Deve ser por isso que ela anda assim, chorando, se afogando em si mesma, pobre menina rica de elogios e apostas, investimentos sem fundos, honra ao mérito, certificados inúteis eternamente envelopados e guardados na gaveta do meio, entre as calcinhas e as bijuterias. A menina dança... Quando ninguém está por perto, tira os sapatos e tortura os pés causando horripilantes bolhas de sangue pisado, e se orgulha da dor de dançar até perder a noção, a razão, seja o que for. Quem perde é porque não quer mais ver. Vai entender.
Essas lembranças assaltam a gente. O passado se mistura com as pretensões de um futuro redundantemente desconhecido. O futuro são os nossos planos. Que planos? Aqueles que montamos como castelos de cartas que desabamos dois minutos depois? Casar, comprar uma bicicleta, ter filhos pentelhos ou sonsos, acreditar que tudo não passa de um comercial de margarina, se deixar levar pelo estresse, pela falta de sexo, pela falta de tino, de tico, de teco, cala a boca que o presente ainda vive e está aqui fazendo um milhão de perguntas resumidas em uma só: dá ou desce? O futuro é pra quem enlouquece com o presente – mas tem que saber que só enlouquecendo é que se sobrevive nessa selva de pedra-clichê. A menina do nariz vermelho tomou um tarja preta e viu tudo azul. A dança das cores nos distrai enquanto traçamos calendários imaginários com coisas que jamais acontecerão. Eis a plenitude da vida real: quebrar a cara minutos depois
Ainda me pergunto qual é a graça do dia seguinte. Deve ser essa coisa de querer novidade o tempo inteiro, confabular tendências para as próximas estações climáticas deixando de lado a importância das estações de rádio. O céu agora não é mais visto a olho nu; anote aí, criançada, pra ver o céu, é preciso ter uma boa câmera e uma boa penca de seguidores. Os diplomas, os amores, as etapas que mandam a gente cumprir como se vivêssemos num eterno vídeo game ainda vivem abençoadas pela pressa, a tal da pressa que faz a gente perder tempo enquanto quer ganhar. O tempo não para? Com certeza. Deve ser por isso que virou zona.
O futuro, meus caros, é corrosivo. Pensar nele atrai mosquitos e crises de estresse – sem falar das desilusões que, sim, virão a galope. Viver o hoje sem pensar na graça de amanhã não é para os fracos. Haja sabedoria, jogo de cintura e habilidade com o compasso. Tem é que endoidar de vez, viver vendo no que vai dar. Agendas ajudam, alarmes, tarefas programadas... Mas nem tudo é tão robótico. Apesar de tudo se tratar de um grande sistema moldado por algum desocupado cansado do ócio, que fique claro: nosso toque especial é que faz tudo valer a pena.  
Amanhã? Putz, que palavra chata. Muda o disco – enquanto é tempo de chamar de disco. E não se preocupe: se por um acaso você cair no rio da contradição, mesmo que se afogue, não tem problema. É a água mais limpa que existe.
Agora eu desligo a máquina e penso no amanhã. Comprarei meu caderno, viverei um dia incerto, está tudo certo...
Pensando bem, apenas desligo a máquina. Sobre amanhã e outras drogas? Que se dane o resto.

(Ouça Nada tanto assim, Kid abelha)


segunda-feira, 20 de abril de 2015

Sobre o futuro e outras drogas - vol. 1

               Antes de começar, ofereço um café. Nada como a boa educação de sempre.
               Começo de semana. Acho graça do silêncio lá de fora – silêncio entrecortado pelo já familiar som das buzinas, das sirenes, dos aviões. Apaguei a luz porque ultimamente ela não tem ajudado muito. Essa luz fria, pálida... Quase fraca de tão forte, quase forte de tão fraca... Da janela, surge o céu vermelho de uma noite que tem tudo para ser chuvosa, mas que se mantém firme e forte sem soltar uma lágrima. Inspiradora, por sinal.
               Já perdi as contas de quantos filmes assisti. Horas antes, devorei um show do meu artista favorito, aquele de queixo esquisito e lábios grandiosos (e que o meu despudor de fã sonha em beijar – desculpa, sociedade). A verdade é que não ouço muito o que ele canta; sei todas as músicas, canto cada uma como se estivesse naquele show, mas a verdade é que a única canção que tem me provocado algo mais é de outro cantor, de outra banda, ai caramba, já me perdi. Em um determinado momento do concerto, ele fala sobre suas canções, sobre como as cria. No fim das contas, tudo vem da necessidade de dar alguma importância ao futuro – não, prefiro dizer “dia seguinte”, fica mais bonitinho. Ele fala que escreve suas canções pensando que tudo se trata de uma grande conexão entre o que sentimos hoje e o que sentiremos amanhã; aquela velha e boa questão sobre não desistir, sobre se permitir ser alguém maior do que o espelho diz, sobre se entregar à vontade de fazer valer a pena cada minuto justamente para que não haja frustração no dia seguinte. Dei voltas nessa linha de pensamento. Fiz curvas perigosas, confesso. De repente, eu estava fazendo pontes com alguns filmes que ando lendo, com músicas que ando ouvindo, com livros que ando lendo... Vítima de uma boa de uma conspiração, talvez.
               Estou lendo um romance francês que tem me causado certo grau evitável de tristeza, mas que, de forma esquisita, combina com boa parte do que o meu ídolo falou – talvez com tudo e mais um pouco. Conta a história de uma garota rica, tão rica, tão podre de rica, tão desocupada, ociosa e mimada que “aproveita a vida” em festas regadas a carreiras de pó e outras formas de decadência humana – isso sem contar as infinitas sacolas de compras que a acompanham em suas tardes parisienses. Quando o amor vem, a vida que já não anda direito dá a cambaleada perfeita para fazer a protagonista repensar suas frustrações. Será que o dia seguinte vale a pena? Farei tudo de novo, uma rotina cansativa e que me levará a novas frustrações, e então eu continuarei nesse poço sem fundo, nessa vida de merda, nesse mundo estranho, violento, que me deixa zonza.
               Nos seriados, nos filmes, nas canções, nas minhas prateleiras digitais: qual é a graça do dia seguinte? Lá está o raio da pergunta que me faz entrar em crise. Ativa, passiva, reflexiva, não importa: todas as pessoas do mundo ainda vão se bater, debater e apanhar mais um pouco atrás da resposta. E talvez nunca a encontrem... O que será ótimo, pois isso significa que não perderam seu precioso tempo dando importância à teoria. A prática é o que importa. Aquilo de se jogar, de experimentar, de descobrir; e isso significa sair da zona de conforto, se afundar no mundo novo, se perder, dar um milhão de voltas, girar até ficar tonto, por que não?
               Nessas tantas voltas que dei buscando uma conclusão, descobri que quando o dia seguinte vira motivo de preocupação, a frustração é certa. O hoje é tão mais importante... O hoje, não se esqueça do artigo definido, mas se puder, substantive esse tal de Hoje, musique, poetize, cronique, faça alguma coisa que o registre nos anais da humanidade. Amanhã é balela. Vai ser triste, vai ser feliz, vai ter um monte de coisas que não conhecemos ainda. Mas vai ser bom, acredite. Basta acreditar. Basta agir quando amanhã for hoje, quando tudo explodir. E se você gosta de teorias, agarre essa: talvez a graça seja justamente o espírito da novidade. E para os que preveem o futuro: essa coisa de spoiler tira toda a graça, vai por mim. Pro cara que canta pensando no amanhã, eu digo que hoje sou sua fã; amanhã já é outra história.

               Ok, vamos dar um tempo no café. Já é madrugada, a fronteira que separa (ou junta) o que foi e o que será. Quer um chá para descansar? 

(Ouça Futures, Zero 7)



(Michael Chase)

terça-feira, 14 de abril de 2015

Linguística



A sua língua na minha
é pura serpentina
me desbaratina essa sua língua
enrolada na minha
fazendo uma só
dando um nó

Me dá vertigem
essa coisa de linguagem
manipulação, sabotagem
sabotági, dominação

Você entende o que eu disse?
Entendo disse você que o não
É puro tédio essa comunicação
cadê órgão outra desse função?

Eu me adequo?
Sou a elite
ou estou na contramão?
Só quero saber da sua língua,
não dessa norma padrão.

Te prescrevo na minha boca
te descrevo no papel
Pode isso? Pode aquilo?
Pode tudo
menos rima pobre,
pose de nobre
e cara de pastel.
A minha língua na sua
é o céu.  

(Ouça TNT, AC/DC) 

(vintage-tumblr)