segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Idealizemos



Dia de faxina. Sabe como é: rádio no volume máximo, emoções a flor da pele, suor, adrenalina, rinite. Mas tem música, então tá tudo certo. Entre cantinhos empoeirados e sobras da pipoca de ontem, o alto-falante ecoa versos violonizados de um cara pedindo uma mulher que seja uma princesa na mesa e uma fera na cama. Que use minissaia. Que seja alta. Difícil pros outros e fácil pra ele. Que tenha tudo (lê-se: grana). Culta, viajada. Que não ligue pra nada.
                Olha, nem quando eu peço meu macarrão no Spoleto sou tão exigente. Mas vida que segue. Guarda essa cartinha que o Frejat escreveu pro Papai Noel aí rapidinho.
                Eu penso na tara humana por idealizações. O cara perfeito, a mina perfeita, o casal perfeito. E como a gente vive quebrando a cara no quesito “agora vai”, os próximos relacionamentos (não necessariamente amorosos) se baseiam numa espécie de test drive. É mais ou menos assim: se fulano ou fulana gostar do mesmo livro que eu, se souber fazer aquele prato que eu gosto, se souber usar as palavras certas, se adivinhar o nome do meu filme favorito... AÍ SIM. Ou seja: passou no teste? É só correr pra relação perfeita que está escrita nas estrelas (ou não, vai que o sujeito não curte essa coisa de signos e você  ~mete o louco~ falando do seu ascendente em gêmeos, né).
                Aí a gente esquece que não existe relação perfeita. Que não existe o cara perfeito, a mina perfeita, que talvez a única coisa perfeita nessa vida seja o pretérito (que de vez em quando consegue se superar na perfeição, se é que isso é possível). Nem Papai Noel existe. O que existe é um monte de gente cansada demais pra acreditar que, dentro dos parâmetros possíveis e altamente surpreendentes da realidade, as coisas podem caminhar não perfeitamente, mas do jeito que devem ser – algo como “destino” ou o clássico “deixa acontecer naturalmente” (tô citando pagode, mas não vai achando que eu sou perfeita porque não, amiguinho, eu não sou).
                Se o caro leitor quiser entrar num barato total e adentrar na história da idealização romântica, bom, me deixe fora dessa porque essa parte da literatura me soca o estômago. Só pare, pense, reflita e pegue no compasso: idealizar pode ser simplesmente a sua forma bizarra de querer controlar tudo e todos. Você nem tá tão cansado de sofrer assim. Às vezes você não passa de um egoísta babacão que escolhe sua mulher como quem escolhe seu lanche, tipo um Frejat da vida que, coitado, nunca mais será o cara que escreveu “Pense e dance”. E ainda é burro, tadinho. Que dó.
                Seria bem hipócrita da minha parte dizer que não idealizo. Lógico que sim. Imagino conversas, momentos, formas de pensar. Mas isso tudo pra pegar no sono, porque essa coisa de ter que imaginar várias falas ao mesmo tempo é beeem cansativa. E ainda tem o cenário, o cabelo, a música de fundo... Lá se foi um bocejo.
                Voltei pra faxina. Mas agora ao som de João Bosco. Se você sonha com um Caê mas a rádio te manda um dererumdereridom-dom-dom-dom, não se aborreça. Vida é fazer todo sonho brilhar.
                Sem deixar de aceitar os fatos – o que pode ser chato e te cobrar um antiácido, mas não ligue. É assim mesmo.

(Não, não abordei o fator machista da listinha de desejos da canção por motivos de: meu estômago já embrulhou uma vez, não quero que ele embrulhe de novo).

(Ouça Perfeição, Legião Urbana)


 

sábado, 3 de setembro de 2016

Deu vontade



Cartas trancadas na gaveta
Madrugadas que são vidas inteiras
Versos sem eira nem beira
Que doideira!

Ver o tempo passar
e a saudade virar sorriso
desses paridos no meio da reza
desses perdidos no meio da prosa
desses sorridos por novos olhos
que me comem, nervosos,
enquanto os seus se fecham.
Que doideira a canção do Chico,
o apego, o desejo, o que não tem nome ou partido.
Que doideira a vontade que passa
e que vira desgraça
ou onda do mar.
Que doideira essa vida
tão cheia de páginas,
tão sublinhada,
tão bem escrita.
Que doideira é se entregar
- umas dessas doideiras
Que talvez você nunca sinta
por medo ou por sina
ou simplesmente por não saber
endoidar. 

(Ouça In Our Nature, José González)