quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Peso de papel



                Acabo de jogar um projeto para o alto. Um entre os cento e oitenta e três prometidos para este ano – aliás, acabo de também jogar para o alto a antiga pretensão de parar de inventar números aleatórios para situações em que essa coisa de How much/how many não importa nem um pouco. Era um projeto escrito, nada demais. Algo acadêmico, engessado, com tema, prazo, pressão – estava me sentindo um quilo de feijão. E essa coisa de escrever é tão intuitiva, não é? Acho que se eu não gostasse tanto disso, seria mais fácil ceder à obrigação. Mas não é o meu caso. O gosto complica a vida da gente. E aqui estou eu, desistente, torcendo para que ainda haja algum resquício do meu lado resiliente. Seria eu uma esponja que sempre volta para o mesmo formato? Teria eu o poder de me reinventar, de me renovar, de renascer a todo instante, mas sem deixar de ser quem sou (seja lá o que eu for)?
                Olha o que o TCC me faz. Risos.
                Há outros projetos largados por aí. Coisas que me quase me fizeram perder a resilência, este superpoder nunca antes visto nas produções da Marvel. Há um pedaço de mim tão cansado, tão maltratado, tão dormente... Um pedaço morto. De repente, eu me sinto controlada por um instinto de proteção que nada mais é do que um eufemismo para um medo exorbitante. E então, além dos escritos, joguei para o alto expectativas de um velho sentimento brotando dentro de mim como um vegetal brota quase que através de um milagre dentro da geladeira. Eu resolvi jogar o amor pro alto. A paixão. O tesão – pensei em dizer “T maiúsculo”, mas não me permito chegar neste nível de ridículo. Resolvi largar o encantamento, o brilho nos olhos, o ciúme, a necessidade de agarrar o fulano e dizer que a cicrana sou eu, só eu, sem beltrana, sem mais ninguém.   
                O problema é que o papel voa, não volta pra gente, não bate na sua cara e diz “querida, você não tem escolha”.
                Mas aí eu percebi que não sou uma esponja. Por mais forte (no sentido de me refazer) que eu seja, eu tenho coisa melhor pra fazer do que me esfregar por aí. Porque isso me entedia, sabe? Me entedia a ideia de fazer sempre as mesmas coisas, de seguir as mesmas obrigações, de escrever as mesmas chatices, de seguir os mesmos sentimentos.
                Até porque quando se trata desse último item, querida, não dá pra falar de mesmice. 

(Ouça Fiction, The XX)


(Georgy Dmitriev)

domingo, 18 de outubro de 2015

Ífis




E se todas essas palavras não forem nada mais do que elos
que formam correntes que arrastamos por aí
as letras, os números, os códigos, os ícones,
e se todas essas coisas fossem miçangas bem amarradas
num cordão que deixa a pele em carne viva
e que depois se espalha no chão
e que depois se perde na poeira da vida
e se todas as rimas fossem placebos para esse tal êxtase que tanto buscamos
e se depois de tantos anos virássemos dependentes químicos
- ou linguísticos, literários, literais
E se a tal coisa que realmente importa nessa vida
for bem diferente daquela que está escrita?
E se só precisarmos olhar pra cima
ou então fechar os olhos
ou se perder, sei lá
entre céus e montanhas
entre ideias loucas que deixamos no banho
entre frenesis que nos abrem os olhos
e que nos fazem ver que as melhores coisas da vida não precisam de palavras?
E se...
Deixa pra lá.
O silêncio há de falar. 

(Ouça "Somos quem podemos ser", Engenheiros do Hawai)


 

 (Grant Haffner)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

1104

Podem me tirar o teto,
Mas não me tiram a casa.
Podem me tirar o sossego,
Mas não me tiram a paz.
Podem me tomar as grades,
Mas nunca me tirarão a janela.
Podem me arrancar os olhos,
Mas jamais terão minha vista.

Me arranquem a rima,
Mas a poesia é e sempre será toda minha.

Não me tiram a altura,
A lua,
A luz e o barulho dos aviões.
Não me tiram as lágrimas,
As aventuras
E nem o peso de algumas decepções.
O registro que cai ao abrir o chuveiro
O ventilador que não funciona direito
A porta sanfonada que bate de madrugada
A madrugada – nunca me tirarão a madrugada!

Me arranquem a rima,
Mas a poesia é e sempre será toda minha.

Pode a vida me pregar peças,
Me fazer mudar de ares e pensares,
E podem até mesmo me arrancar a tal da vida
Mas desse chão, meu pobre,
Desse chão não saio,
Não caio,
Não desgrudo.
Daqui só vou para a vida
Mesmo que eu me perca em trocentas milhas
Mas daqui eu sempre serei
- daqui ninguém me tira.

Me arranquem a rima,
Mas a poesia é e sempre será toda minha.

(Ouça The captain of her heart, Double)