sexta-feira, 19 de junho de 2015

Visão noturna

               Olhando a folha em branco, sinto todos os meus planos se amontoarem e se transformarem em desenhos de um livro de colorir. Todos em preto em branco, como fotografias aleatórias na memória estúpida de uma câmera qualquer, um grupo de mil fotografias de onde apenas uma considerada boa sai. Olhando para a janela, vislumbro as coisas mais lindas que a vida nos dá mas a gente finge que não vê, porque esse jogo parece bacana, esse jogo estranho de viver e reclamar, como se realmente estivéssemos insatisfeitos – só estamos com preguiça de aplaudir o tempo todo, é isso. Haja otimismo pra pouco parágrafo.
               Olhando o tempo que muda sem parar atacando minha alergia e me tirando da zona de conforto, sinto meu rosto gelado, meu cabelo molhado, minha vida intacta esperando aviões. A música diz tudo... “Sou pista vazia esperando aviões”. Parece indecente... E talvez seja, porque tudo na vida é indecente, da escova à pasta de dente, do céu à rima carente (pra não dizer pobre), deu pra entender? Me lembro daquele réveillon de trânsito infernal e risadas de agonia, me lembro do tempo em que eu não tinha do que me lembrar porque era uma criança e a memória ainda não tinha história pra contar, me lembro de cada coisa que cê não acreditaria, acredite. Eu me lembro até do que não vivi. Seria este um caso de poderes sobrenaturais?
               Olhando a TV desligada, penso nos programas que percorrem a grade dessa madrugada. Sim, madrugada rima com desligada, e isso é interessante porque faz todo o sentido. O sentido é todo feito de coisas assim, óbvias, loucas, quase imperceptíveis, indefectíveis como o vestido da garota nacional, inenarráveis como essas novelas doidas que são exibidas, essas histórias que não têm nada a ver com a nossa, como os sussurros de lamentações que percorrem a mesma madrugada com a TV desligada, e agora eu sinto a tocha olímpica arder na minha mão depois de completar essa volta tresloucada com as palavras.
               Olhando ao meu redor, vejo bagunça, lamúria, lágrima, dor. E eu não sou médica, exorcista, feiticeira. Só me resta esperar, assistir, entender. Rezar, mas não muito alto para não acordar os vizinhos. Beber um copo d’água, se fazer de sorte, aguardar as cenas dos próximos capítulos... Essas novelas são mesmo péssimas.
               Olhando mais um pouco... Não há mais o que olhar. A vista embaçada grita. Vamos decolar. A noite é uma criança, e o futuro está onde deve estar. Deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem.
               Por hoje, é só. 

(Ouça Resposta ao tempo, Nana Caymmi) 

(Marius Brede)
 

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