sábado, 27 de junho de 2015

A floresta

   Talvez eu deva começar falando sobre essas unhas roídas e esse bando de ideias que pisoteiam o meu corpo, porque é exatamente assim que eu me sinto nesse momento: pisoteado. As paredes brancas do quarto chegam a ser escuras de tão claras, e como isso pode ser possível? Deve ser a luz fria, a lâmpada fluorescente, a falta de gente no recinto, falta de calor humano, essas coisas. Por isso, me transporto para a floresta de Nathaniel, aquela em que a mocinha marcada pelo seu “pecado” se isola e pode ser ela mesma, sem ter de lidar com caras feias e o medo de não ser aceita; a mesma floresta em que Goodman Brown descobriu bruxas, demônios e toda a relva de bizarrices que o acompanhavam desde sempre, e viu máscaras caírem ao chão num salto em câmera lenta, focando nos rostos repletos de atrocidades e na trilha sonora amedrontadora. Eu habito essa floresta nesse exato instante. Ninguém pode me ver além das árvores, das montanhas, das feitiçarias que existem desde que o mundo é mundo. Sou como um animal, um tigre, um leão, onça pintada... Não nasci para domesticidades. A minha casa é aonde eu posso ser quem sou, sem inverdades disfarçadas com sorrisos amarelos e poucas palavras. É onde a ansiedade eclode, e cá estou eu desfilando sem unhas, os órgãos tremem, os gritos fazem um mar de ondas sonoras insurfáveis de tão perigosas, e do céu caem lágrimas que se confundem com as minhas. Às vezes, eu choro por dentro, um medo estranho de cair no esquecimento, de perder, de não ganhar, de viver na contra mão. Medo de encarar um incompleto álbum de conquistas – e ainda ter de se virar com a dor de barriga. Pílulas me agridem a goela, e eu acredito em seu efeito devastador de almas e cérebros cansados – mas não adianta, ainda estou acordado. A minha floresta agora é encantada, invadida por um batalhão de lápis de cor prestes a despontarem uns aos outros numa guerra de cores perdidas. O arco-íris virou símbolo de piada para os que se acham estrela, e agora eu não sei se apelo para o preto e branco ou para o sépia – tudo para sair desse inferno que eu mesmo me meti. Faltou o dinheiro do dízimo, das contas, do psiquiatra. O remédio precisa ser mais forte. Enquanto isso, cuido da minha floresta. Ela me salva de mim mesmo e dessas coisas que eu nem sei se posso chamar de medo, porque todas as definições tão bem registradinhas no dicionário resolveram se perder nessa minha cabeça louca e nessas minhas lágrimas que eu solto no escuro, quando ninguém vê, quando o lenço torna-se desnecessário.
Eles dizem que eu me isolei. Virei bicho do mato. Outro dia, diziam que eu falava demais, era impulsivo, tremia mais do que devia. A floresta me aceita assim – talvez porque ela não se importe. E até que é bom essa coisa de ser só mais um fulano sem a menor importância num mundo feito de holofotes.
A floresta está dentro de mim. 

(Ouça É o que me interessa, Lenine)

(Michelle Carolan)

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Visão noturna

               Olhando a folha em branco, sinto todos os meus planos se amontoarem e se transformarem em desenhos de um livro de colorir. Todos em preto em branco, como fotografias aleatórias na memória estúpida de uma câmera qualquer, um grupo de mil fotografias de onde apenas uma considerada boa sai. Olhando para a janela, vislumbro as coisas mais lindas que a vida nos dá mas a gente finge que não vê, porque esse jogo parece bacana, esse jogo estranho de viver e reclamar, como se realmente estivéssemos insatisfeitos – só estamos com preguiça de aplaudir o tempo todo, é isso. Haja otimismo pra pouco parágrafo.
               Olhando o tempo que muda sem parar atacando minha alergia e me tirando da zona de conforto, sinto meu rosto gelado, meu cabelo molhado, minha vida intacta esperando aviões. A música diz tudo... “Sou pista vazia esperando aviões”. Parece indecente... E talvez seja, porque tudo na vida é indecente, da escova à pasta de dente, do céu à rima carente (pra não dizer pobre), deu pra entender? Me lembro daquele réveillon de trânsito infernal e risadas de agonia, me lembro do tempo em que eu não tinha do que me lembrar porque era uma criança e a memória ainda não tinha história pra contar, me lembro de cada coisa que cê não acreditaria, acredite. Eu me lembro até do que não vivi. Seria este um caso de poderes sobrenaturais?
               Olhando a TV desligada, penso nos programas que percorrem a grade dessa madrugada. Sim, madrugada rima com desligada, e isso é interessante porque faz todo o sentido. O sentido é todo feito de coisas assim, óbvias, loucas, quase imperceptíveis, indefectíveis como o vestido da garota nacional, inenarráveis como essas novelas doidas que são exibidas, essas histórias que não têm nada a ver com a nossa, como os sussurros de lamentações que percorrem a mesma madrugada com a TV desligada, e agora eu sinto a tocha olímpica arder na minha mão depois de completar essa volta tresloucada com as palavras.
               Olhando ao meu redor, vejo bagunça, lamúria, lágrima, dor. E eu não sou médica, exorcista, feiticeira. Só me resta esperar, assistir, entender. Rezar, mas não muito alto para não acordar os vizinhos. Beber um copo d’água, se fazer de sorte, aguardar as cenas dos próximos capítulos... Essas novelas são mesmo péssimas.
               Olhando mais um pouco... Não há mais o que olhar. A vista embaçada grita. Vamos decolar. A noite é uma criança, e o futuro está onde deve estar. Deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem.
               Por hoje, é só. 

(Ouça Resposta ao tempo, Nana Caymmi) 

(Marius Brede)
 

domingo, 14 de junho de 2015

Passado simples



Eu era dor
eu era cor
eu era rima
pobre menina
dessas que se deixam levar
pelas coisas mais lindas
que a vida não dá
eu era nada
e tudo ao mesmo tempo
eu era o tempo
eu sou o tempo
todos os tempos
todos os modos
“Cadê os modos?”
- gritou minha vó
Nesse nó no pescoço
eu me torço, contorço
eu me atrapalho
eu te enlaço
eu te enlacei
no último verso
no último passo
na última nota
no último acorde
do teu violão
eu era canção
eu era silêncio
eu era
eu sou
já nem me lembro. 

(Ouça Esquecimento, Skank)

(Tumblr)