quarta-feira, 27 de abril de 2016

Os outros

Apareceu alguém no feed do meu Twitter comentando a existência do anônimo fazendo e vivendo coisas tão distintas e inimagináveis que chegam a ser incríveis. Faz tempo que uma reflexão me pega de relance desse jeito. Faz tempo que não paro pra pensar nessas coisas estranhamente necessárias de vez em quando.
Sem crises, por favor. Não há espaço para o tal raio problematizador nesse texto de parágrafos perdidos. Nada contra, mas é que a agonia se rendeu à admiração enquanto eu tracejava esse projeto de pensamento.
Pensar que do outro lado da janela tem alguém explorando algum corpo, o seu próprio corpo ou uma nada inocente geladeira. Pensar que tem alguém chorando do outro lado da cidade, dedilhando uns versos amargos no violão pra tentar suprir a saudade de alguém que foi embora, que se fez ausente, porque ausência é coisa que se faz presente – fique à vontade para eleger o melhor sentido pra essa frase. Pensar que no andar de cima tem alguém ligando a tevê, jogando seus nervos tensos num sofá desconfortável, devorando um balde de pipoca pra ver se esquece um pouco esse mundo que te obriga a ser perfeito, magro, atraente – a tevê ligada infelizmente não deixa esse esquecimento se criar. Pensar que no andar debaixo há um casal brigando, ou se juntando, ah, que se dane a fase desse relacionamento estranho... São só mais dois discutindo necessidades, compartilhando falsas verdades, criando monstros em forma de eufemismos. Só mais dois num mundo de contas perdidas. Sem contar as etapas, as perdas, os ganhos, os recomeços...
Memes. A vida é pura repetição. Mais do que as piadas e apelidos que viralizam em questão de segundos na web. A memética fala sobre a transmissão da mensagem, o “passar do bastão”, a replicação – mais do que biológica, cultural. É bem mais consistente que a clonagem, que envolve pura e simplesmente a ideia do control c + control v. No entanto, apesar dos caminhos diferentes, acabam esbarrando na mesma pedra: a repetição. Repetir-se todo dia, a todo instante, os mesmos sentimentos, as mesmas ações, os mesmos desejos de fugir e fazer tudo diferente. E o que é o diferente? Quem é o diferente? Onde ele está, o que ele quer, o que ele faz? Será que topa trocar de lugar comigo?
Nessas viagens entre genes, memes e toques de literatura para pintar a vida alheia, reparo que o alheio não existe. É só uma linha imaginária que deveria proteger a ideia de privacidade, mas que acaba alimentando a imaginação do “outro”. Às vezes, só nos falta um punhado de empatia para entender que as nossas diferenças reforçam ainda mais essa ideia de unidade. Porque no fundo, somos todos uma coisa só. Nossas ramificações até tentam nos distinguir, mas não adianta: tudo leva a crer que não passamos de um grande saco de areia. O amor da gente é como um grão, bem disse Gil num contexto primo desse daqui.
Pode ser que eu esteja patinando num romantismo estranho pra dizer que somos todos um bando de iguais loucos pelo papel do diferentão – um grande meme, por sinal. Pode ser também que eu esteja fazendo a seca para me debulhar em lágrimas no ponto final ao concluir que, nesse carnaval todo, somos todos fruto de uma grande e desvairada repetição.
E a grande certeza de tudo cabe a você, caro leitor. Cabe em você. É você que deve dizer, interpretar, sentir. Compreender o que eu sinto sem ao menos me conhecer.
Bom, você me conhece.

(Ouça repetition, Information Society)
 (Tytus Brzozowski)